Dá o que pensar...
Interpretar o governo
Bolsonaro como um fracasso é um equívoco perigoso. Ao mesmo tempo, anunciá-lo
como a vitória definitiva de um projeto autoritário-fascista é igualmente
equivocado.
O projeto do governo é
inserir o Brasil no neoliberalismo profundo, riscando do mapa a presença do
Estado na economia e nas políticas públicas sociais.
Bolsonaro tem importância
relativa nesse projeto. É uma figura caricata, violenta, inculta, mas que
interpela com êxito largas parcelas da população. A Presidência caiu no seu
colo como um prêmio de loteria. É transparente que ele não tem ideia do que é
ser presidente da república, mas isso tem pouca importância para o projeto.
Certamente é foco de chacota em encontros internacionais, mas há cinismo nisso.
Ao mesmo tempo que deve ser desconfortável para o sofisticado Macron, a
cientista Merkel ou o milionário Trump conviver com Bolsonaro, eles sabem que o
ex-tenente é um peão importante no xadrez do imperialismo capitalista do século
21.
O governo se organiza com
muita esperteza para cumprir esse papel. Enganam-se os que imaginam que estamos
frente a dois governos paralelos, um competentemente neoliberal e técnico,
outro culturalmente obscuro e ideológico. Essa divisão é falsa e serve a muitos
interesses.
A equipe econômica aparece
como respeitável para todos os setores conservadores do país: os empresários de
diferentes plumagens e a grande mídia, mesmo as que Bolsonaro “detesta”, como a
Globo e a Folha. Na última, colunas de opinião dão chances a críticas, já na
Globo, mesmo em sua versão mais sofisticada, a Globonews, as reformas propostas
pelo governo são anunciadas por todos os seus jornalistas como necessárias e
bem-vindas. Nisso a mídia é uma aliada importante do Poder Legislativo,
liderado pelo hábil Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados, que articula a
aprovação de reformas ultraconservadoras. O governo teve uma importante vitória
com a aprovação da reforma da Previdência e certamente outras virão.
Mas o projeto
desestruturante necessita de uma sociedade desorganizada e passiva, uma
sociedade não demandante. Essa talvez seja a questão mais séria que o
neoliberalismo em geral enfrenta no século 21, pois há sociedades mobilizadas
que se espalham por diferentes partes do mundo, com organizações diversas e
demandas variadas. Seria uma imprudência analítica encontrar uma causa comum
para todas as manifestações que ocorrem desde 2011, mas seria igualmente
temeroso atribuí-las à mera coincidência.
A questão mais séria em tudo
isso é por que, após um ano de governo, não está sendo produzida uma reação
popular capaz de ameaçar esse projeto autoritário, obscurantista, no limite do
fascismo?
O problema é que não se
elimina a consciência crítica da sociedade em um passe de mágica. No Brasil, o
governo Bolsonaro faz dois ataques estratégicos e simultâneos nesse sentido: o
primeiro reduz ao mínimo, quando não zera, recursos orçamentários para as áreas
da cultura e da educação: faz ameaça contra o cinema, o teatro, as artes
visuais, a música, a educação em todos os níveis e a ciência. O segundo ataque
se dirige aos setores que necessitam ser convencidos de que cultura, ciências,
luta por direitos, por liberdade e igualdade são farsas. Qualifica todas as
áreas da cultura e da educação como produtoras do marxismo cultural, da
ideologia de gênero e de riscos à família e à religião e assim dá sentido à
farsa, central para fragilizar as classes populares e minimizar suas possíveis
demandas. Nesse esforço, as igrejas evangélicas são aliadas fundamentais.
Não se pode satanizar as
igrejas evangélicas e afirmar que elas só existem para apoiar governos como o
de Bolsonaro. O crescimento exponencial das denominações pentecostais é um
fenômeno complexo e não pode ser atribuído a cenários momentosos. Mas o que se
deve pontuar aqui é que essas igrejas formam lideranças e congregações
predispostas a se colocarem em antagonismo às liberdades individuais, às
ciências, à cultura, à luta por direitos.
As congregações são celeiros
para teorias terraplanistas, antiecológicas, antivacinação, antiborto, a favor
da família tradicional, da violência policial, do armamento e do
encarceramento. Criam espaços privilegiados para ministros que afirmam ter
visões de entidades religiosas, ou como o da educação, que trata de convencer a
população de que nas universidades há grandes plantações de maconha e que seus
laboratórios de química produzem anfetaminas. Nesse cenário, dirigir carros de
aplicativos acaba parecendo muito mais digno do que perder tempo em antros
amorais como as universidades. Em um país com índices muito baixos de leitura,
a fala do presidente, ao dizer que os livros didáticos têm texto demais, cai
como uma luva.
O êxito do governo na
desmobilização e/ou paralisia política da sociedade pode ser medido,
paradoxalmente, por dois eventos muito festejados pelas forças de oposição: as
revelações do Intercept Brasil, que mostraram as formas não republicanas como
foram montadas as provas contra Lula pelo então juiz Moro na operação Lava
Jato, e a soltura do próprio Lula, por consequência da decisão do STF contra a
prisão de condenados em segunda instância. Moro continua sendo o ministro mais
popular do governo, mais popular que o próprio Bolsonaro. E Lula, solto, fez
pouca diferença.
A questão mais séria em tudo
isso, que necessita ser pensada para além de justificativas ao sucesso de
Bolsonaro como consequência das fake news, é por que, após um ano de governo —
que precarizou a vida das camadas mais pobres da população; reduziu verbas para
a saúde; atacou a educação e, principalmente seu setor de maior êxito, as
universidades federais; matou pobres, principalmente crianças e jovens negros
nas comunidades; desqualificou a cultura; perseguiu movimentos sociais — não
está sendo produzida uma reação popular capaz de ameaçar esse projeto
autoritário, obscurantista, no limite do fascismo?
O sucesso do governo não
pode ser medido pela melhoria das condições de vida do brasileiro em qualquer
aspecto, seja a saúde, a educação, o emprego. Não foi a isso que veio, mas,
sim, na confortável apatia da população frente a quem está a destruir com
precisão cirúrgica conquistas fundamentais para os brasileiros, algumas
inclusive garantidas na Constituição de 1988.
2020 é um ano eleitoral,
portanto um ano muito imprevisível. É esperar para ver.
Céli Regina Jardim Pinto é
cientista política e professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
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