CITAÇÕES DE PAULO FREIRE/PEDAGOGIA DO
OPRIMIDO
1. Justificativa da <<pedagogia do oprimido>>
“Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a desumanização, não apenas como
viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez
sobretudo, a partir desta dolorosa
constatação que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua
humanização. Ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem num permanente
movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto
real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos
e conscientes de sua inconclusão.
Mas, se ambas são
possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos
homens. Vocação negada,
mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na
violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de
luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.
A desumanização, que
não se verifica apenas nos que têm a sua humanidade roubada, mas também, ainda
que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na
história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos
homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de
total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela
desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não
teria significação. Esta somente é
possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é,
porém, destino dado, mas resultado de
uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos”. (p. 30).
A CONTRADIÇÃO OPRESSORES-OPRIMIDOS. SUA SUPERAÇÃO
“A violência dos opressores, que os faz também desumanizados,
não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o
ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os
oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la,
não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos
opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica
dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes, que
oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste
poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça de debilidade dos
oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto é que
o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos
oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como
jamais a ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para
que sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da
permanência da injustiça. A “ordem”
social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se
nutre da morte, do desalento e da miséria.
(...)
Quem, melhor que os
oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma
sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão?
Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo
acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da
necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os
oprimidos, será um ato de amor, com
o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo
quando esta se revista da falsa generosidade referida”. (pp. 30 – 32).
+
“Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tira, senão de
tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre
soubesse de onde vem o teu óbulo, ele o recusaria porque teria a impressão de
morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria
estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus
irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros
de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito
grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?” São Gregório de Níssa, (330) Sermão contra os Usuários. (Citado por Freire, p. 31).
“O grande problema está
em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da
elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor
poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a
dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é
impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser
elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica
– a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como
manifestações da desumanização. (p. 32)
Há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está
diretamente ligado à pedagogia libertadora. É que, quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os
oprimidos, em vez de buscar a libertação na luta e por ela, tendem a ser
opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu pensar se encontra
condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial em que
se “formam”. O
seu ideal e, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição
em que sempre estiveram e cuja superação não lhes está clara, é ser opressores.
Estes são o seu testemunho de humanidade. (p. 32)
Isto decorre, como analisaremos mais adiante, com mais vagar,
do fato de que, em certo momento de sua
experiência existencial, os oprimidos assumem uma postura que chamamos de
“aderência” ao opressor. Nestas circunstâncias, não chegam a “admirá-lo”, o que
os levaria a objetivá-lo, a descobri-lo fora de si. (p. 32)
Ao fazermos esta afirmação, não queremos dizer que os
oprimidos, neste caso, não se saibam oprimidos. O seu conhecimento de si
mesmos, como oprimidos, se encontra, contudo, prejudicado pela “imersão” em que
se acham na realidade opressora. (p. 32) “Reconhecerem-se”, a este nível,
contrários ao outro, não significa ainda lutar pela superação da contradição.
Daí esta quase aberração: um dos pólos da contradição pretendendo não a
libertação, mas a identificação com o seu contrário. (pp. 32 e 33)
O “homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem
a nascer da superação da contradição, com a transformação da velha situação
concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novo homem
são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do
homem novo é uma visão individualista. A
sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa,
nem a consciência de classe oprimida. (p. 33)
(...)
Raros são os camponeses que, ao serem “promovidos” a
capatazes, não se tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do
que o patrão mesmo. Poder-se-á dizer – e com razão – que isto se deve ao fato
de que a situação concreta, vigente, de opressão não foi transformada. E que,
nesta hipótese, o capataz, para assegurar seu posto, tem de encarnar, com mais
dureza ainda, a dureza do patrão. Tal afirmação não nega a nossa – a de que,
nestas circunstâncias, os oprimidos têm no opressor o seu testemunho de “homem”.
(p. 33)
(...)Perdura neles, de certo modo, a sombra testemunhal do
opressor (...). Este continua a ser o seu testemunho de “humanidade”. (p. 33)
O “medo da liberdade”,
de que se fazem objeto os oprimidos, medo da liberdade que tanto pode
conduzi-los a pretender ser opressores também, quanto pode mantê-los atados ao status de oprimidos, é outro aspecto que
merece igualmente reflexão. (p. 33) Este medo da liberdade
também se instala nos opressores, mas, obviamente, de maneira diferente. Nos
oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo
de perder a “liberdade” de oprimir. (Nota de rodapé p. 33)
Um dos elementos
básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção de uma
consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a
consciência recebedora no que vimos chamando de consciência “hospedeira” da
consciência opressora. Por isto, o comportamento dos oprimidos é um
comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as pautas
dos opressores. (p.
34)
Os oprimidos,
que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a
liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria
deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão com outro “conteúdo” –
o da sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente
busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser
livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também
a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam.
Não é idéia que se faça mito. É condição
indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres
inconclusos. (p. 34)
E, se a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e
desumanizante, que atinge os que oprimem e os oprimidos, não vai caber, como já
afirmamos, aos primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de
oprimir, mas aos segundos, gerar de seu ser
menos a busca do ser mais de
todos. (p. 34)
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na
própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de
assumi-la. E a temem, também, na medida em que lutar por ela significa uma
ameaça, não só aos que a usam para oprimir, como seus “proprietários”
exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com maiores
repressões. (p. 34)
Quando descobrem em si
o anseio por liberdade, percebem que este anseio somente se faz concretude na
concretude de outros anseios. (p. 34)
Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a
outros e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmos,
preferindo a gregarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em
que sua não-liberdade os mantém à comunhão criadora a que a liberdade leva, até
mesmo quando ainda somente busca. (p. 35)
Sofrem uma dualidade
que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres,
não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo
tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles
mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de “dentro” de si.
Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou
terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a
ilusão de que atuam na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não
terem voz, castrados
no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo.
(p. 35)
Este é o trágico dilema dos oprimidos (...). (p. 35)
(...) o que caracteriza os oprimidos, como “consciência
servil” em relação à consciência do senhor, é fazer-se quase “coisa” e
transformar-se, como salienta Hegel, em “consciência para outro” (...) a
realidade objetiva que os faz ser este “ser para outro”. (p. 36)
“Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante
dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um
“tratamento” humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre
os opressores, modelos para sua “promoção”. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua
redenção.” (p. 41)
(...) A situação de opressão em que se “formam”, em que
“realizam” sua existência, os constitui nesta dualidade, na qual se encontram
proibidos de ser. (...) (p. 42)
“Basta, porém, que
homens estejam proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal
proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência. Violência real, não
importa que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade a que nos
referimos, porque
fere a ontológica e histórica vocação dos homens – a do ser mais.
Daí que, estabelecida a
relação opressora, esteja inaugurada a violência, que jamais foi até hoje, na
história, deflagrada pelos oprimidos.
Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles
são o resultado de uma violência?
Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se
objetivamente, os constitui?
Não haveria oprimidos,
se não houvesse uma relação de violência que os conforma como violentados, numa
situação objetiva de opressão.
Inauguram a violência
os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os
oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como
outro. (p.42)
(...)
Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são
submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em
que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo. (pp. 42 e 43)
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os
tiranos.
Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro
odiaram.
Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a
sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua. (p.43)
Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua
“generosidade”, são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de
oprimidos, mas, conforme se situem, interna ou externamente, de “essa gente”,
ou de “essa massa cega e invejosa”, ou de “selvagens”, ou de “nativos”, ou de
“subversivos”, são sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os
“violentos”, os “bárbaros”, os “malvados”, os “ferozes”, quando reagem à
violência dos opressores.” (p. 43)
“Os opressores,
violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os
oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar,
lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão.
Por isso é que somente
os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto
classe que oprime, nem libertam, nem se libertam.” (p. 43)
A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO E OS OPRESSORES
“Mas o que ocorre, ainda quando a superação da contradição se
faça em termos autênticos, com a instalação de uma nova situação concreta, de
uma nova realidade inaugurada pelos oprimidos que se libertam, é que os opressores de ontem não se
reconheçam em libertação. Pelo contrário, vão sentir-se como se realmente
estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” na experiência de opressores,
tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir significa opressão a eles.
Vão sentir-se, agora, na nova situação, como oprimidos porque, se antes podiam
comer, vestir, calçar, educar-se, passear, ouvir Beethoven, enquanto milhões
não comiam, não calçavam, não vestiam, não estudavam nem tampouco passeavam,
quanto mais podiam ouvir Beethoven, qualquer
restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes parece uma profunda
violência a seu direito de pessoa. Direito de pessoa que, na situação anterior,
não respeitava nos milhões de pessoas que sofriam e morriam de fome, de dor, de
tristeza, de desesperança. (pp. 44 e 45)
É que, para eles,
pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são “coisas”. Para eles, há um só direito – o seu direito de viverem em paz, ante o
direito de sobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam, mas somente admitam
aos oprimidos. E isto ainda, porque, afinal, é preciso que os oprimidos
existam, para que eles existam e sejam “generosos”...
Esta maneira de proceder, de compreender o mundo e os homens
(que necessariamente os faz reagir à instalação de um novo poder), explica-se, como já dissemos, na
experiência em que se constituem como classe dominadora.
Em verdade,
instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda uma forma de
ser e comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores e nos
oprimidos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta situação, refletem
a opressão que os marca”. (p.45)
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido (36ª Ed.). Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987.
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