O QUE É
IDEOLOGIA, SEGUNDO MARILENA CHAUÍ
“Ideologia: um mascaramento da realidade social
que permite a legitimação da exploração e da dominação. Por intermédio dela,
tomamos o falso por verdadeiro, o injusto por justo. Como ocorre essa ilusão,
essa fabricação de uma história imaginária? Qual sua origem? Quais seus
mecanismos, seus fins e efeitos sociais, econômicos e políticos?” (Contra
Capa).
(...)
“Ora, o real não é um dado sensível nem um dado intelectual,
mas é
um processo, um movimento temporal da constituição dos seres e de suas
significações, e esse processo depende fundamentalmente do modo como os homens
se relacionam entre si e com a natureza. (p. 19).
Essas relações entre os homens e deles com a natureza
constituem as relações sociais como algo produzido pelos próprios homens, ainda
que estes não tenham consciência de serem seus únicos autores. (p.19).
É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
compreender o quê, como e por que os homens agem e pensam de maneiras
determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de
conservá-las ou transformá-las. (pp. 19 e 20).
Trata-se, (...), de compreender a própria origem das relações
sociais, de suas diferenças temporais, em uma palavra, de encará-las como
processos históricos. (p. 20).
(...)
A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso
das idéias, mas o modo como homens determinados em condições determinadas criam
os meios e a formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa
existência social que é econômica, política e cultural. (p. 20).
A história é práxis (no grego, práxis significa um modo de agir no qual
o agente, sua ação e o produto de sua ação são termos intrinsecamente ligados e
dependentes uns dos outros, não sendo possível separá-los). (p. 20).
Nesta perspectiva, a história é o real e o real é o movimento
incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre foram escolhidas
por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições
determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, instituições
religiosas, tipos de educação, formas de arte, transmissão dos costumes,
língua, etc.). (pp. 20 e 21)
Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de
instituições determinadas, os homens produzem
idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender
sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o
sobrenatural. (p. 21).
Essas ideais ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real
como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. (p. 21).
Esse ocultamento
da realidade social chama-se ideologia.
(p. 21).
Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais
de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto
fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou
reproduzir as relações sociais existentes ou transformá-las, seja de maneira
radical (quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem
reformas). (p. 21).
Nossa tarefa será, pois, a de compreender por que a ideologia é possível: qual sua origem, quais
seus fins, quais seus mecanismos e quais seus efeitos históricos, isto é,
sociais, econômicos, políticos e culturais.” (p. 21).
(...)
“De maneira esquemática (e, portanto, muito grosseira),
podemos caracterizar a obra hegeliana como: (p. 35).
(...)
ALIENAÇÃO
6) um trabalho filosófico que procura dar conta do fenômeno
da alienação. Em geral, considera-se
que o exterior (as coisas naturais, os produtos do trabalho, a sociedade, etc.)
é algo positivo em si e que se distingue do interior (a consciência, o
sujeito). Hegel mostra que o exterior e o interior são as duas faces do
Espírito, são dois momentos da vida e
do trabalho do Espírito. Essas duas faces aparecem
como separadas, mas essa separação foi produzida pelo próprio Espírito, ao se
exteriorizar nas obras e ao se interiorizar compreendendo sua produção.
Ora, quando a interiorização não ocorre, isto é, quando o
sujeito não se reconhece como produtor das obras e como sujeito da história,
mas toma as obras e a história como forças estranhas, exteriores, alheias a ele
e que o dominam e perseguem, temos o que Hegel designa como alienação.
(pp. 40 e 41).
Esta é a impossibilidade do sujeito histórico identificar-se
com sua obra, tomando-a como um poder separado dele, ameaçador e estranho. (p.
41).
7) um trabalho filosófico que diferencia imediato e mediato,
abstrato e concreto, aparência e ser.
Imediato, abstrato e aparência são sinônimos; não significam
irrealidade e falsidade, mas sim o modo pelo qual uma realidade se oferece como
algo dado, como um fato positivo dotado de características próprias e já
prontas, ordenadas, classificadas e relacionadas por nosso entendimento.
Mediato, concreto e ser são sinônimos: referem-se ao processo
de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias.
O conhecimento da realidade exige que diferenciemos o modo
como uma realidade aparece e o modo como é concretamente produzida.
Imediato, abstrato e aparência são momentos do trabalho
histórico negados pela mediação, pelo concreto e pelo ser.
Isto significa que esses termos são contraditórios e reais.
Sua síntese é efetuada pelo espírito. Essa síntese é o que Hegel denomina: conceito.
(p. 41).
(...)
A unidade ou síntese do proprietário, do sujeito e do membro
da família chama-se, agora, o cidadão. Ora, entre os cidadãos (ou
seja, entre as classes sociais) existem conflitos e se reabre a contradição.
Agora, a contradição se estabelece entre os interesses de cada classe social e
os das outras, e entre os interesses dos próprios membros de uma classe social.
Ou seja, ressurge, de modo novo, a contradição entre o privado (cada classe) e
o público (todas as classes). A resolução dessa contradição e feita pelo
Estado. (p. 45).
O Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa
realidade coletiva a totalidade dos interesses individuais, familiares,
sociais, privados e públicos. Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente
real e somente nele se define a existência social e moral dos homens. O Estado
é o Espírito Objetivo. (pp. 45 e 46).
O Estado é uma comunidade. Mas difere da comunidade familiar
e da comunidade das classes sociais (suas corporações), porque não possui
nenhum interesse particular, mas apenas interesses comuns e gerais de todos.
É uma comunidade universal (isto é, seus interesses não sendo
particulares, desta ou daquela família, deste ou daquele indivíduo, desta ou
daquela classe, são interesses universais).
O Estado não é, pois, um dado imediato da vida social, mas um
produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito
Objetivo. O Estado é a idéia política por excelência, uma
das mais altas sínteses do Espírito. Nele se harmonizam os interesses da pessoa
(proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política). (p.
46).
(...)
“Da concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento interno de
produção da realidade cujo motor é a contradição.
Porém Marx demonstra que a contradição não é a do Espírito
consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetivo, entre sua exteriorização
em obras e sua interiorização em idéias: a contradição se estabelece entre
homens reais em condições históricas e sociais reais e se chama luta
de classes. (pp. 46 e 47).
A história não é, portanto, o processo pelo qual o Espírito
toma posse de si mesmo, não é história das realizações do Espírito.
A história é história
do modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência.
É história do modo como
se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou imediato dos bens naturais e
pela procriação), como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo
trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela
divisão social do trabalho e pela forma de propriedade, que constituem as
formas das relações de produção.
É também história do
modo como os homens interpretam todas essas relações, seja numa interpretação
imaginária, como na ideologia, seja
numa interpretação real, pelo conhecimento da história que produziu ou produz
tais relações.” (p.
47).
“Da concepção hegeliana, Marx também conserva as diferenças
entre abstrato/concreto, imediato/mediato, aparecer/ser.
Tanto assim que define o concreto como “unidade do diverso,
síntese de muitas determinações”, devendo-se entender o conceito de determinação não como sinônimo de
conjunto de propriedades ou de características, mas como os resultados que constituem uma realidade no processo pelo qual
ela é produzida. (pp. 47 e 48).
Ou seja, enquanto o conceito de “propriedades” ou de
“características" pressupõe um objeto como dado e acabado, o conceito de
“determinação” pressupõe uma realidade como um processo temporal.” (p. 47).
“Na Contribuição à
Crítica da Economia Política e n’O
Capital, Marx afirma que o método
histórico-dialético deve partir
do que é mais abstrato ou mais simples ou mais imediato (o que se
oferece à observação), percorrer o
processo contraditório de sua constituição real e atingir o concreto como um
sistema de mediações e de relações cada vez mais complexas e que nunca
estão dadas à observação.
Trata-se sempre de começar
pelo aparecer
social e chegar, pelas mediações
reais, ao ser social.
Trata-se também de mostrar
como o ser do social determina o
modo como este aparece aos homens.” (p. 48).
“Assim, por exemplo, a mercadoria será considerada a forma
mais simples e mais abstrata do modo de produção capitalista, o qual
aparece
imediatamente como uma imensa produção, acumulação, distribuição e consumo
de mercadorias. (destaques nossos).
A análise da mercadoria revelará, por exemplo, que há mais
mercadoria do que supúnhamos à primeira vista, pois um elemento fundamental,
do modo de produção capitalista, o trabalhador, que aparece como um
ser humano, é, na verdade, uma mercadoria – ele vende no mercado sua
força-de-trabalho. (p. 48). (destaques nossos).
Por outro lado, quando compreendemos qual é a gênese
ou origem
da mercadoria (as mediações que a constituem), compreendemos que não
se trata de uma coisa tão simples como parecia, pois ela é, ao mesmo tempo, valor de uso e valor
de troca. Ela não é uma “coisa”, mas um valor. Como valor de uso, parece valer
por sua utilidade, e, como valor de troca, parece valer por seu preço no
mercado.
Ora, as análises de Marx revelam que o valor de uso é inteiramente
determinado pelas condições do mercado, de sorte que o
valor de troca comanda o valor de uso. Ora, o valor de troca não é
determinado pelo preço como parece à primeira vista. Isto é, o
valor da mercadoria não surge no momento em que ela começa a circular no
mercado e a ser consumida. Seu
valor é produzido num outro lugar: ele é determinado pela quantidade de tempo
de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo
gasto diretamente na fabricação dessa mercadoria, mas inclui o tempo de
trabalho necessário para produzir as máquinas, o tempo para extrair e para
transportar a matéria prima, etc. E o que são todos esses “tempos”? São tempos de trabalho da sociedade.
Também entra no preço da mercadoria, como parte do chamado custo de produção, o
salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa
mercadoria, pagamento que é feito para que ele se alimente, se aloje, se vista, se
transporte e se reproduza procriando filhos para o mesmo trabalho de produzir
mercadorias. (p. 49). (destaques nossos).
Vemos, assim, que o valor de troca da mercadoria, o seu
preço, envolve todos os outros tempos anteriores e posteriores ao tempo
necessário para produzi-la e distribuí-la. No preço da mercadoria está incluído
o gasto (físico, psíquico e econômico) para produzi-la. Ela não é uma coisa, mas trabalho social concentrado.
Como estabelecer o valor de troca entre um metro de linho e
um quilo de ferro? Ser “valor” é “valer por algo”, é ser equivalente. Como
estabelecer a equivalência entre o metro de linho e o quilo de ferro? Por sua
realidade material são heterogêneos, por seu valor de uso também são
heterogêneos. Onde encontrar uma medida comum para dizermos que um
metro de linho equivale a um quilo de ferro? A equivalência vai ser estabelecida medindo o tempo de trabalho socialmente
necessário para produzi-los. Ou seja, o
tempo de trabalho que envolve toda a sociedade fundará o valor de troca.
Vemos, portanto, que o preço da mercadoria no comércio é uma aparência, pois a
determinação do valor dessa mercadoria depende do tempo de trabalho de sua
produção e esse tempo envolve o dos demais trabalhos que tornaram possível a
fabricação dessa mercadoria.
Ora, sabemos que o produtor da mercadoria recebe
um salário, que é o preço de seu tempo de trabalho, pois este também é uma
mercadoria. Suponhamos, então, que para fabricar um metro de linho e
para extrair um quilo do ferro, os trabalhadores precisem de 8 horas de
trabalho. Suponhamos que o preço desses produtos no mercado seja de Cr$ 16,00.
Diremos, então, que cada hora de trabalho equivale a Cr$ 2,00. Porém, quando
vamos verificar qual é o salário desses trabalhadores, descobrimos que não
recebem Cr$ 16,00, mas sim Cr$ 8,00. Há, portanto, 4 horas de trabalho que não
foram pagas, apesar de estarem incluídas no preço final da mercadoria. Essas
4 horas de trabalho não pago constituem a mais-valia, o lucro do proprietário da mina de ferro ou do proprietário da
fábrica de linho. Formam seu capital. A origem do capital, portanto, é o
trabalho não pago. Graças à mais-valia, a
mercadoria não é um valor de uso e um valor de troca qualquer, mas um valor
capitalista. (pp. 50-51). (destaques nossos).
Vemos, pois, que a mercadoria não é uma coisa (como aparece),
mas trabalho
social, tempo de trabalho. E não é qualquer tempo de trabalho, mas tempo
de trabalho não pago, portanto a mercadoria oculta o fato de que há exploração econômica.” (p. 51). (destaques
nossos).
“Estamos longe, agora, do aparecer social – estamos diante do modo de constituição real
do sistema capitalista. Passamos de algo abstrato e imediato
a algo concreto e mediato: passamos da mercadoria como coisa
à mercadoria como valor de uso e de troca, destes à mercadoria como tempo de
trabalho social, deste à mercadoria como trabalho não pago e, portanto,
à forma
de relação social entre o proprietário privado dos meios de produção e o
trabalhador por ele explorado.” (pp. 51-52). (destaques nossos).
“Da concepção hegeliana, Marx também conserva a afirmação de
que a realidade é histórica e que por isso é reflexionante., ou seja, realiza a
reflexão. Em outras
palavras, a realidade é um movimento de contradições que produzem e reproduzem o
modo de existência social dos homens, e que, realizando uma volta completa
sobre si mesma, pode conduzir à transformação desse modo de existência social.
Ora, aqui surge um problema. Em Hegel não havia a menor
dificuldade para considerar o real como capaz de reflexão, pois o real era o
Espírito, o Espírito era sujeito e todo sujeito é sujeito porque capaz de
reflexão. Mas a dialética marxista não é espiritualista ou idealista, e sim materialista.
Ora, a matéria, como provam as ciências naturais, é algo inerte, constituído
por relações mecânicas de causa e efeito, de partes exteriores umas às outras,
sendo inconcebível supor que haja interioridade naquilo que é material. E reflexão
supõe uma interiorização, uma volta sobre si e para dentro de si.
Como colocar reflexão na matéria? É que a matéria de que fala Marx não é
a matéria física ou química, a coisa inerte não possui atividade
interna. A matéria de que fala Marx é a
matéria social, isto é, as relações
sociais entendidas como relações de
produção, ou seja, como o modo
pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de
existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. A
matéria do materialismo histórico-dialético são os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de
se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens. Assim
sendo, a reflexão não é impossível. Basta que percebamos que o
sujeito da história, seu agente, embora não seja o Espírito, é
sujeito: são as classes sociais
em luta. (pp. 52-53). (destaques nossos).
AS classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção
de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram
formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e
aquelas formas por meio de instituições sociais e políticas, representam para
si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de
idéias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes
sociais são o fazer-se classe dos
indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais. (p. 53). (destaques nossos).
A dialética é materialista porque seu motor não é o trabalho
do Espírito, mas o trabalho material propriamente dito: o trabalho como relação dos
homens com a Natureza, para negar as
coisas naturais enquanto naturais, transformado-as em coisas humanizadas ou
culturais, produtos do trabalho.
Mas o que interessa realmente à dialética materialista não é a simples relação
dos homens com a Natureza através (pela mediação) do trabalho. O que
interessa é a divisão social do trabalho e, portanto, a relação entre os
próprios homens através do trabalho dividido. Essa divisão começa no
trabalho sexual de procriação, prossegue na divisão de tarefas no interior da
família, continua como divisão entre pastoreio e agricultura e entre estes e o
comércio, caminha separando proprietários das condições do trabalho e
trabalhadores, avança como separação entre cidade e campo e entre trabalho
manual e trabalho intelectual. Essas
formas da divisão social do trabalho, ao mesmo tempo em que determinam a
divisão entre proprietários e não proprietários, entre trabalhadores e
pensadores, determinam a formação das classes sociais e, finalmente, a
separação entre sociedade e política, isto é, entre instituições sociais e Estado. (pp. 53-54). (destaques
nossos).
O motor da dialética materialista é a forma determinada das
condições de trabalho, isto é, das condições de
produção e reprodução da existência social do homens, forma que é sempre determinada
por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das
condições de trabalho e não proprietários (servos, escravos,
trabalhadores assalariados).” (p. 54). (destaques nossos).
“Enfim, da concepção hegeliana Marx também conserva o
conceito de alienação, tendo como referência as análises de Feuerbach
sobre a alienação religiosa. Para Feuerbach, a religião é a forma suprema
da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da essência humana num
Ser superior, estranho e separado dos homens, um poder que os domina e governa
porque não reconhecem que foi criado por eles próprios. (pp. 54-55). (destaques
nossos).
ALIENAÇÃO
Todavia, Marx imprimirá grandes modificações nesse conceito.
Contra Hegel, dirá que a alienação não é do Espírito, mas dos
homens reais em condições reais. Contra Feuerbach dirá, em primeiro
lugar, que não há uma “essência humana”, pois o homem é um ser histórico que se
faz diferentemente em condições históricas diferentes; e, em segundo
lugar, que a alienação religiosa na é a forma fundamental da alienação, mas
apenas um efeito de uma outra alienação real, que é a alienação do
trabalho. O trabalho alienado é
aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se no produto de seu trabalho,
porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não
dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho.
Como se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio
produto, não o veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como
um poder separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça.
(p. 55). (destaques nossos).
(...)
FETICHISMO DA MERCADORIA
Que é a mercadoria? Trabalho humano concentrado e não pago.
Por depender da forma da propriedade privada capitalista, que separa o
trabalhador dos meios, instrumentos e condições da produção, a
mercadoria é uma realidade social. No entanto, o trabalhador e os
demais membros da sociedade capitalista não percebem que a mercadoria,
por ser produto do trabalho, exprime relações sociais determinadas.
Percebem a mercadoria como uma coisa dotada de valor de uso (utilidade)
e de valor
de troca (preço). Ela é percebida e consumida como uma simples coisa.
(pp. 55-56). (destaques nossos).
Assim, em lugar da mercadoria aparecer como resultado
de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um
bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em
si mesma, como se fosse um dom natural das próprias coisas.
Besta entrarmos num supermercado nos sábados à tarde para vermos o espetáculo
de pessoas tirando de prateleiras mercadorias como se estivessem apanhando
frutas numa árvore, para entendermos como a mercadoria desapareceu
enquanto trabalho concentrado e não pago. (p. 56). (destaques nossos).
E como o dinheiro também é mercadoria (aquela
mercadoria que serve para estabelecer um equivalente social geral para todas
as outras mercadorias), tem início uma relação fantástica das mercadorias umas
com as outras (a mercadoria Cr$ 18,00 se relaciona com a mercadoria sabonete
Gessy, a mercadoria Cr$ 5.000,00 se relaciona com a mercadoria menino-que-faz-pacotes,
etc. etc.). As coisas-mercadorias começam, pois, a se relacionar umas com as
outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida
própria (um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um
cigarro vale “um estilo de vida”, um automóvel zero km. vale “um jeito de
viver”, uma bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem”,
etc., etc.). E os homens-mercadorias aparecem como coisas (um nordestino
vale Cr$ 20,00 à hora, na construção civil, um médico vale Cr$ 2.000,00 à hora,
no seu consultório, etc., etc.). A mercadoria passa a ter vida própria indo
da fábrica à loja, da loja à casa, como se caminhasse sobre seus próprios pés.
(pp. 56-57). (destaques nossos).
O primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche
(no sentido religioso da palavra), uma coisa que existe em si e por si.
O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o
seguinte: assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos,
gestos) tem poder sobre seus crentes ou adoradores, os domina como uma força
estranha, assim também a mercadoria. O mundo se transforma numa imensa
fantasmagoria. (p. 57). (destaques nossos).
Como, então, aparecem as relações sociais de trabalho? Como
relações materiais entre sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas.
E Marx afirma que as relações sociais aparecem tais como efetivamente são. Que
significa dizer que a aparência social é a própria realidade
social? Significa mostrar que no modo de
produção capitalista os homens realmente são transformados em coisas e as
coisas são realmente transformadas em “gente”. (pp. 57-58). (destaques
nossos).
Com efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho que recebe uma
outra coisa chamada salário. O
produto trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria que possui uma outra coisa, isto é, um
preço. O proprietário das condições de
trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada capital, que possui uma outra coisa, a capacidade
de ter lucros. Desaparecem os seres humanos, ou melhor, eles existem
sob a forma de coisas (donde o termo
usado por Lucaks: reificação; do latim: res, que signisifca coisa).
Em contrapartida, as coisas produzidas e as relações entre
elas (produção, distribuição, circulação, consumo) se humanizam e passam a ter
relações sociais. Produzir, distribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar,
trabalhar, todas essas atividades econômicas começam a funcionar e a operar
sozinhas, por si mesmas, com uma lógica que emana delas próprias,
independentemente dos homens que as realizam. Os homens se tornam os
suportes dessas operações, instrumentos delas.
Alienação, reificação,
fetichismo: é esse
processo fantástico no qual as atividades humanas começam a se realizar como se
fossem autônomas ou independentes dos homens, sem que estes possam
controlá-las. São ameaçados e perseguidos por elas. Tornam-se objetos
delas. Basta pensar no trabalhador submetido às “vontades” da máquina regulada
por um “cérebro eletrônico”, ou no indivíduo que, jogando na bolsa de valores
de São Paulo, tem sua vida determinada pela falência de um banco numa cidade do
interior da Europa, de que nunca ouviu falar. (pp. 58-59). (destaques nossos).
Quando Marx afirma que as relações sociais capitalistas aparecem
tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade capitalista se
identificaram, ele o diz porque houve uma gigantesca inversão na qual o social
vira coisa e a coisa vira social. É isto a realidade capitalista.” (p.
59). (destaques nossos).
“Uma pergunta nos vem agora: por que os homens conservam essa
realidade? Como se explica que não percebam a reificação? Como entender que o
trabalhador não se revolte contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana, mas ainda é explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago
(a mais-valia) é o que mantém a existência do capital e do capitalista? Como explicar
que essa realidade nos apareça como natural, normal, racional, aceitável? De onde vem o obscurecimento da existência das contradições e dos antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da existências das classes
sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras?
A resposta a essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia.” (p. 59). (destaques
nossos).
“Nas considerações sobre “a ideologia em geral”, Marx e
Engels determinam o momento de surgimento das ideologias no instante em que a divisão
social do trabalho separa trabalho material ou manual e trabalho
intelectual. Para compreendermos por que esta separação aparecerá como independência
das idéias com relação ao real e, posteriormente, como privilégio destas sobre
aquele, precisamos acompanhar em linhas gerais o processo da divisão social do
trabalho, tal como Marx e Engels o expõem na Ideologia Alemã.
***
Os homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais
não porque tenham consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem
as condições de sua própria existência material e espiritual. São o que
produzem e são como produzem.
Essa produção das condições de existência depende
de condições naturais (as do meio ambiente e as biofisiológicas do organismo
humano) e do aumento da população pela procriação. Esta, além de ser natural,
já é também social, pois determina a forma de intercâmbio e
de cooperação entre os homens, forma esta que, por sua vez, determina
a forma da produção na divisão do trabalho. (p. 60). (destaques nossos).
A produção e reprodução
das condições de existência através do trabalho (relação com a natureza), da
divisão do trabalho (relação de intercâmbio e de cooperação entre os homens),
da procriação (sexualidade e família), constituem em cada época o conjunto das forças produtivas que determinam e são
determinadas pela divisão social do trabalho. Essa divisão, que já se inicia na própria família,
conduz à separação entre pastoreio e agricultura, entre ambos e a indústria e
entre os três e o comércio. Estas separações conduzem à separação entre cidade
e campo, ao mesmo tempo em que, no interior de cada esfera de atividade, novas
formas de divisão do trabalho se desenvolvem. (pp. 60-61). (destaques nossos).
A divisão social do
trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação de algo
fundamental na existência histórica: a
existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre as
condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo,
por sua vez, na desigual distribuição
do produto do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é engendrada
pela desigualdade
social ou pela forma da propriedade. (p. 61). (destaques nossos).
A propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma
família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo.
A segunda forma da
propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade privada coletiva dos
cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da
sociedade é constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos.
Esta separação permite aos senhores se distanciarem da terra e dos ofícios, que
ficam a cargo dos escravos – esta separação leva os senhores a viverem nas
cidades e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o campo,
de onde resultarão lutas sociais e políticas.
A terceira forma da
propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como propriedade
privada territorial trabalhada por servos da gleba, e como
propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais
das corporações que vivem nos burgos (cidades medievais). A
estrutura da sociedade cria os proprietários como nobreza feudal e como
oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como servos da terra enfeudada e
como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma figura social
intermediária: o comerciante.
As transformações
dessa estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do
trabalho, dá origem à forma da propriedade que conhecemos: a propriedade privada capitalista.
Aqui a divisão social do trabalho alcança seu ápice: de um lado, os
proprietários privados do capital (portanto dos meios, condições e
instrumentos da produção e da distribuição), que são também os proprietários do
produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou
dos trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força
de trabalho, que vendem como mercadoria ao proprietário do capital. (pp.
61-62). (destaques nossos).
(...) a passagem dessas formas da propriedade ou da divisão
social do trabalho, cujas transformações constituem o solo real da história
real. (...) a relação de produção (é definida) a partir do processo de
constituição das forças produtivas na divisão social do trabalho, (...) ou
seja, modo de produção. Este
não é um dado, mas uma forma social criada pelas ações econômicas e políticas dos agentes sociais (independente
de sua vontade e de sua consciência). É o sistema das relações de produção e de
suas representações por meio de categorias jurídicas, políticas, culturais, etc.
(p. 63). (destaques nossos).
A consciência, (...)
estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da
existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as idéias nascem da
atividade material.
Isto não significa, porém, que os homens representem nessas idéias a realidade
de suas condições materiais, mas, ao contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na experiência imediata. Por esse motivo, as idéias tendem a ser uma representação
invertida do processo real, colocando como origem ou como causa aquilo que é
efeito ou conseqüência, e vice-versa. (pp. 64-65). (destaques nossos).
(...)
Também as relações sociais são representadas imediatamente
pelas idéias de maneira invertida. Com efeito, à medida que uma forma
determinada da divisão social do trabalho se estabiliza, se fixa e se repete,
cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é
atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças
produtivas e, evidentemente, pela forma da propriedade. (...) A partir desse momento, todo o conjunto das
relações sociais aparece nas idéias como se fossem coisas em si, existentes por
si mesmas e não como conseqüência das relações humanas. Pelo contrário, as
ações humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como
existindo por si mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas idéias
religiosas, se “humaniza” ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é, aparece como um dado natural, necessário e
eterno, e não como resultado da práxis humana. “Esta fixação da atividade
social – esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior
a nós, que escapa de nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz
a nada nossos cálculos – é um dos momentos fundamentais do desenvolvimento
histórico que até aqui tivemos”.” (pp. 64-65). (destaques nossos).
ALIENAÇÃO
“A forma inicial da
consciência é, portanto, a ALIENAÇÃO. E porque a alienação é a manifestação
inicial da consciência, A IDEOLOGIA SERÁ POSSÍVEL: as idéias serão tomadas como
anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder
espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens.”
“A divisão social do
trabalho torna-se completa quando o trabalho material e o espiritual se
separam.
Somente com essa
divisão “a consciência pode realmente imaginar ser diferente da consciência da
práxis existente, representar realmente
algo, sem representar algo real.
Desde esse instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e
entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc.,
‘puras’.
Nasce agora a IDEOLOGIA
propriamente dita, isto é, o sistema
ordenado de idéias ou representações e das normas e regras como algo separado e
independente das condições materiais, visto que seus produtores – os
teóricos, os ideólogos, os intelectuais – não
estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas
idéias. Ou seja: as idéias aparecem como
produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores estão distantes
da produção material. Assim, em lugar de aparecer que os pensadores estão
distanciados do mundo material e por isso suas idéias revelam tal separação, o
que aparece é que as idéias é que estão separadas do mundo e o explicam. As
idéias não aparecem como produtos do pensamento de homens determinados –
aqueles que estão fora da produção material direta – mas como entidades
autônomas descobertas por tais homens. (pp. 65-66). (destaques nossos).
As idéias podem parecer
estar em contradição com as relações sociais existentes, com o mundo material
dado, porém essa contradição não se estabelece realmente entre as idéias e o
mundo, mas é uma conseqüência do fato de que o mundo social é contraditório. Porém,
como as contradições reais permanecem
ocultas (são as contradições entre as relações de produção ou as forças
produtivas e as relações sociais), parece que a contradição real è aquela entre
as idéias e o mundo. Assim, por exemplo, faz parte da ideologia burguesa
afirmar que a educação é um direito de todos os homens. Ora, na
realidade sabemos que isto não ocorre. Nossa tendência, então, será a de dizer
que há uma contradição entre a idéia de educação e a realidade. Na verdade,
porém, essa contradição existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma
outra: a contradição entre os que
produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e aqueles que usufruem
dessas riquezas, excluindo delas os produtores. Porque estes se encontram
excluídos do direito de usufruir dos bens que produzem, estão excluídos da
educação, que é um desses bens. Em geral, o pedreiro que faz a escola,
o marceneiro que faz as carteiras, mesas e lousas, são analfabetos e não têm
condições de enviar seus filhos para a escola que foi por eles produzida. Essa
é a contradição real, da qual a contradição entre idéia de “direito de todos à
educação” e uma sociedade de maioria analfabeta é apenas o efeito ou a
conseqüência.” (pp. 66-67). (destaques nossos).
“Em suma, Engels e Marx consideram que os três aspectos que são condições para que haja história – força de
produção, relações sociais e consciência – podem entrar e efetivamente entram
em contradição como resultado da divisão social do trabalho material e intelectual
porque, agora, o trabalho e a fruição, a produção e o consumo aparecem como
realmente são, isto é, cabendo a indivíduos diferentes. Instalou-se
para a própria consciência imediata dos homens a percepção da desigualdade
social: uns pensam, outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não podem
consumir os produtos de seu trabalho.” (p. 67). (destaques nossos).
“Outra contradição mais aguda surge ainda: a
contradição entre os interesses de um indivíduo ou de uma família particular e
os interesses coletivos. No entanto, diferentemente de Hegel, Marx e
Engels demonstram que tais interesses não são realmente coletivos ou comuns,
mas apenas o sistema social de dependência recíproca dos indivíduos entre os
quais o trabalho, os meios e condições do trabalho e os produtos do trabalho
estão desigualmente distribuídos. (pp. 67-68). (destaques nossos).
Existem conflitos entre os proprietários e existem
contradições entre os proprietários e os não proprietários. Há oposição entre
os interesses dos proprietários e há contradição entre os interesses de todo os
proprietários e os de todos os não proprietários. Os conflitos (entre proprietários) e a contradição (entre proprietários
e não proprietários) aparecem para a
consciência dos sujeitos sociais como se fossem conflitos entre o interesse
particular e o interesse comum ou geral. Na realidade, porém, há antagonismos
entre classes sociais particulares, pois ONDE HOUVER
PROPRIEDADE PRIVADA NÃO PODE HAVER INTERESSE SOCIAL COMUM. (p. 68).
(destaques nossos).
“É justamente desta contradição entre o interesse particular
e o suposto interesse coletivo que este último toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos
reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de
comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada
conglomerado familiar ou tribal – tais como laços de sangue, linguagem, divisão
do trabalho em maior escala e outros interesses – e sobretudo, como
desenvolveremos adiante, baseada nas classes sociais já condicionadas pela
divisão social do trabalho, que se isolam em cada um desses conglomerados
humanos e entre as quais há uma que
domina sobre as outras todas (...) O poder social, isto é, a força
produtiva unificada multiplicada, que nasce da cooperação de vários indivíduos
exigida pela divisão do trabalho, aparece para esses indivíduos não como seu
próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja
origem e cujo destino ignoram e que, pelo contrário, percorre agora uma série
particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e
do agir dos homens e que, na verdade, dirige
esse querer e esse agir.” (pp. 68-69). (Citação da autora e destaques
nossos).
“Assim como da divisão entre trabalho material e
intelectual nasce a suposição de uma autonomia das idéias, como se fossem ou
como se tivessem uma realidade própria independentes dos homens, assim
também, da separação entre os homens em
classes sociais particulares com interesses particulares contraditórios, nasce
a idéia de um interesse geral ou comum que se encarna numa instituição
determinada: o Estado.
O Estado aparece como a realização do interesse
geral (por isso
Hegel dizia que o Estado era a universalidade da vida social), mas, na realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e poderosa da
sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência de interesses de toda
a sociedade. (p. 69). (destaques nossos).
O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e
regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado
e acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina a
sociedade. Ele exprime na esfera política as relações de exploração que existem
na esfera econômica.
O Estado é uma
comunidade ilusória. Isto não quer dizer que seja falso, mas sim que ele
aparece como comunidade porque é assim percebido pelos sujeitos sociais. Estes
precisam dessa figura unificada e unificadora para conseguirem tolerar a
existência das divisões sociais, escondendo que tais divisões permanecem
através do Estado. O
Estado é a expressão política da sociedade civil enquanto dividida em classes.
Não é, como imaginava Hegel, a superação das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre
as outras. (p. 70). (destaques nossos).
Como, porém, o Estado não poderia realizar sua função
apaziguadora e reguladora da sociedade (em benefício de uma classe) se
aparecesse como realização de interesses particulares, ele precisa aparecer como uma forma muito especial de dominação: uma
dominação impessoal e anônima, a dominação exercida através de um mecanismo
impessoal que são as leis ou o Direito Civil. Graças às leis, o Estado
aparece como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em lugar
do Estado aparecer como poder social unificado, aparece como um poder desligado
dos homens. Por isso também, em lugar de ser dirigido pelos homens, aparece
como um poder cuja origem e finalidade permanecem secretos e que dirigem os
homens. Enfim, como o Estado ganhou autonomia, ele parece ter sua própria
história, suas fases e estágios próprios, sem nenhuma dependência da história
social efetiva.” (pp. 70-71). (destaques nossos).
“Está aberto o caminho
para a ideologia política que explicará a sociedade através das formas dos
regimes políticos (aristocracia, monarquia, democracia, ditadura, anarquia) e
que explicará a história pelas transformações do Estado (passagem de um regime
político para outro).
A divisão social, que separa proprietários e destituídos,
exploradores e explorados, que separa intelectuais e trabalhadores, sociedade
civil e Estado, interesse privado e interesse geral; é uma situação que não será superada por meio de teorias, nem por uma
transformação da consciência, visto que tais separações não foram produzidas
pela teoria nem pela consciência, mas pelas relações sociais de produção e suas
representações pensadas. (p. 71). (destaques nossos).
Assim, a transformação
histórica capaz de ultrapassar essas divisões e as contradições que as
sustentam depende de pressupostos (condições ou pré-condições) práticos e não teóricos. Esses pressupostos ou pré-condições
práticos são:
1) surgimento da massa
da humanidade como massa inteiramente destituída de propriedade e em
contradição com um mundo da cultura e da riqueza produzido por essa massa que
se encontra excluída da abundância por ela produzida;
É
fundamental, diz Marx, que haja total desenvolvimento das forças produtivas
(capitalistas), isto é, que tenha sido produzido um mundo cultural e material
abundante, pois, sem isso, a massa revolucionária teria que recomeçar o
processo histórico partindo da carência e da escassez, da luta pela
sobrevivência material imediata, e seria obrigada a repor as divisões e
contradições que pretendia superar;
2) que a divisão entre
os proprietários privados das condições de produção e a massa destituída seja
um fenômeno universal, de modo que quando a massa destituída de um país iniciar
sua revolução seja acompanhada pela revolução de todas as massas do planeta; em outras palavras, é preciso que o modo de produção
capitalista tenha se tornado um processo histórico mundial ou universal para
que uma revolução plena possa efetuar-se.
O
capitalismo como mercado mundial é,
portanto, o pressuposto prático do comunismo como sociedade na qual os
indivíduos exercerão o controle consciente dos poderes que parecem dominá-los
de fora (Natureza, Mercado, Estado). (pp. 71-72). (destaques nossos).
A massa dos explorados enfim compreenderá que esses poderes
foram produzidos pela práxis social e, que, por serem produtos da atividade
histórica dos homens em condições determinadas, também podem ser destruídos pela prática social dos homens em condições
determinadas. Até agora os homens fizeram a história, mas sem saber que a
faziam, pois ao fazê-la em condições determinadas que não foram escolhidas por
eles, tomavam tais condições como poderes exteriores e dominadores que os
compeliam a agir. Com a revolução
comunista, os homens saberão que fazem a história, mesmo que não tenham
escolhido as condições em que a fazem. (pp. 72-73). (destaques nossos).
Sem as condições
materiais da revolução, é inútil a idéia
de revolução, “já proclamada centenas de vezes”. Mas sem a compreensão
intelectual dessas condições materiais, a revolução permanece como um horizonte
desejado, sem encontrar práticas que a efetivem”. (p. 73). (destaques nossos).
“A história não é o
desenvolvimento das idéias, mas o das forças produtivas. Não é a ação dos
Estados e dos governantes, mas a luta das classes. Não é história das mudanças de regimes políticos, mas a das relações de
produção que determinam as forças políticas da dominação. Assim sendo, qual é o
palco onde se desenvolve a história? A sociedade civil.
A sociedade civil não é o aglomerado conflitante de famílias
e de corporações (sindicatos, trustes, cartéis, holdings, oligopólios) que
serão reconciliados graças à ação reguladora e ordenadora do Estado enquanto
expressão do interesse geral. A
sociedade civil é o sistema de relações sociais que se organizam na produção
econômica, nas instituições sociais e políticas e que são representadas ou
interpretadas por um conjunto sistemático de idéias jurídicas, religiosas, políticas,
morais, pedagógicas, científicas, artísticas, filosóficas. (pp. 73-74).
(destaques nossos).
A sociedade civil é o
processo de constituição e de reposição das condições materiais de existência,
isto é, da produção (trabalho, divisão do trabalho, processo de trabalho, forma
de distribuição e de consumo, circulação, acumulação e concentração da
riqueza), por meio das quais são engendradas as classes sociais (exploradores e
explorados, isto é, a contradição entre proprietários e não proprietários). A relação entre as classes assim
produzidas é contraditória porque a condição necessária e suficiente para que
haja proprietários privados é a existência dos não proprietários. Ou seja, a
existência da classe dos proprietários depende inteiramente da existência
da classe dos não proprietários, e esta última nasce do processo pelo qual
alguns proprietários conseguem expropriar todos os outros e conseguem reduzir
todo o restante da sociedade (escravos, servos, artesãos) à condição de
assalariados. Em uma palavra, no caso da sociedade civil capitalista,
afirmar que a existência dos proprietários (da classe capitalista) depende da
exploração dos não proprietários (trabalhadores assalariados) significa
simplesmente o seguinte: o capital é o trabalho não pago (a
mais-valia). Temos uma contradição na medida em que a realidade do capital é a
negação do trabalho. (p. 74). (destaques nossos).
A sociedade civil se
realiza através de um conjunto de instituições sociais encarregadas de permitir
a REPRODUÇÃO ou a reposição das relações sociais – família, escola, igrejas,
polícia, partidos políticos, imprensa, meios de informação, magistraturas, Estado,
etc. Ela é também o lugar onde essas instituições e o
conjunto das relações sociais são pensadas ou interpretadas por meio das idéias
– jurídicas, pedagógicas, morais, religiosas, científicas, filosóficas,
artísticas, políticas, etc. (p. 75). (destaques nossos).
Produzida pela divisão
social do trabalho que a cinde em classes contraditórias, a sociedade civil se
realiza como luta de classes. A luta de classes não é apenas o confronto armado
das classes, mas está presente em todos os procedimentos institucionais,
políticos, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão para
manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de trabalho
(separando os trabalhadores uns dos outros e separando a esfera de decisão e de
controle do trabalho da esfera de execução, deixando esta última para os
trabalhadores) e o modo de se apropriar dos produtos (pela exploração da
mais-valia e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que
produziram), até as normas do Direito e o funcionamento do Estado. Ela está
presente também em todas as ações dos trabalhadores da cidade e do campo para
diminuir a dominação e a exploração, indo desde a luta pela diminuição da
jornada de trabalho, o aumento de salários, as greves, a criação de sindicatos
livres até a formação de movimentos políticos para derrubar a classe dominante.
A luta de classes é o quotidiano da
sociedade civil. Está na política salarial, sanitária, e educacional, está na
propaganda e no consumo, está nas greves e nas eleições, está nas relações
entre pais e filhos, professores e estudantes, policiais e povo, juízes e réus,
patrões e empregados. (pp. 75-76). (destaques nossos).
Se a história é a história da luta de classes, então a
sociedade civil não é A Sociedade, isto é, uma
espécie de grande indivíduo coletivo, um organismo feito de partes ou de órgãos
funcionais que ora estão em harmonia e ora estão em conflito, ora estão bem
regulados, ora estão em crise. A
sociedade civil concebida como um indivíduo coletivo é uma das grandes idéias
da IDEOLOGIA BURGUESA para ocultar que a sociedade civil é a PRODUÇÃO e
REPRODUÇÃO da divisão em classes e é a luta das classes. Isto significa que
a sociedade não pode ser o sujeito da
história, criando-se e recriando-se a si mesma por passes de mágica. A história são “os indivíduos fazendo-se
uns aos outros, tanto física quanto espiritualmente”.
Este
“fazer-se-uns-aos-outros” é a práxis
social e significa:
1) que as classes sociais não estão feitas e acabadas pela
sociedade, mas que estão se fazendo umas às outras por sua ação e que esta
produz o movimento da sociedade civil;
2) que o conjunto das práticas sociais, tanto materiais
quanto espirituais, fazendo os indivíduos existirem como seres contraditórios,
os faz membros de uma classe social, isto é, participantes de formas
diferenciadas de existência social, determinadas pelas relações econômicas de
produção, pelas instituições sócio-políticas e pelas idéias ou representações.
O sujeito da história, portanto, são as
classes sociais.” (pp. 76-77). (destaques nossos).
“Ora, Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua classe é uma
relação alienada. Ou seja, assim como a Natureza, a Sociedade e o
Estado aparecem para a consciência imediata dos indivíduos como
poderes separados e estranhos que os dominam e governam, assim também a
relação dos indivíduos com a classe lhes aparece imediatamente como uma relação
com algo já dado e que os determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e
determinada. A classe ganha autonomia com relação aos
indivíduos, de modo que, em lugar de aparecer como resultante da ação
deles, aparece de maneira invertida, isto é, como causando as ações deles.
(p. 77). (destaques nossos).
“A classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que
estes últimos encontram
suas condições de vida preestabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e o
seu desenvolvimento pessoal determinado pela classe. Tornam-se
subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos
isolados à divisão do trabalho e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se
supera a propriedade privada e o próprio trabalho. Indicamos várias vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe determina e se
transforma, ao mesmo tempo, em sua subsunção a todo tipo de representações.”
(pp. 77-78). (citação da autora e destaques nossos).
Esta última frase (...) é fundamental para compreendermos
a relação entre ALIENAÇÃO e IDEOLOGIA.
A ideologia
não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo
involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos
indivíduos. Ora, a
partir do momento em que a relação do indivíduo com sua classe é a da submissão
a condições de vida e de trabalho pré-fixadas, essa submissão faz com que cada
indivíduo não possa reconhecer-se como fazedor de sua própria classe. Ou seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe decorre da atividade de seus membros. Pelo
contrário, a classe aparece como uma coisa em si e por si e da qual o indivíduo
se converte numa parte, quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino. A
classe começa, então, a ser representada pelos indivíduos como algo natural (e
não histórico), como um fato bruto que os domina, como uma “coisa” onde vivem.
A ideologia burguesa, através de uma ciência chamada Sociologia, transforma em
idéia científica ou em objeto científico essa “coisa” denominada “classe
social”, estudando-a como um fato e não como resultado da ação dos homens.” (p.
78). (Aspas da autora e destaques nossos).
“A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir idéias que
confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que
são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo
próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem e os preguiçosos,
empobrecem. Ou, então, faz
com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida social,
permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de melhorar –
ocultando, assim, que os que trabalham não são senhores de seu trabalho e que,
portanto, suas “chances de melhorar” não dependem deles, mas de quem possui os
meios e condições do trabalho. Ou, ainda, faz com que os homens creiam que
são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são iguais
perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos
dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes.” (pp. 78-79). (destaques
nossos).
ALIENAÇÃO
“Marx e Engels insistem em que não devemos tomar o problema
da alienação como ponto de partida necessário para a transformação histórica.
Ou seja, não devemos esperar que através da simples crítica da alienação haja
uma modificação na consciência dos homens e que, graças a essa modificação, que
é um mudança subjetiva, haverá uma mudança objetiva. Insistem em que a
alienação é um fenômeno objetivo (algo produzido pelas condições reais de
existência dos homens) e não um simples fenômeno subjetivo, isto é, um engano
de nossa consciência. (p. 79) (destaques nossos).
A alienação é um processo ou o processo social como um todo.
Não é produzida por um erro da consciência que se desvia da verdade, mas é
resultado da própria ação social dos homens, da própria atividade material
quando esta se separa deles, quando não podem controlá-la e são ameaçados e
governados por ela. A transformação deve ser simultaneamente subjetiva e objetiva: a
prática dos homens precisa ser diferente para que suas idéia sejam diferentes.”
(pp. 79-80). (destaques nossos).
“Todas as formas e todos os produtos da consciência não podem ser
dissolvidos por força da crítica espiritual (como pretendiam os
ideólogos alemães), pela dissolução dos fantasmas por ação da “autoconsciência”
ou pela transformação dos “fantasmas”, dos “espectros”, das “visões” (maneira
pela qual os ideólogos alemães descreviam a alienação). Só podem ser dissolvidos pela derrocada prática das relações reais de
onde emanam essa tapeações idealistas. Não é a crítica, mas a revolução, a
força matriz da história.” (p. 80, citação da autora e destaques nossos).
TEORIA
Com isto, Marx e Engels dão à teoria um sentido inteiramente novo
enquanto crítica revolucionária: a teoria não está encarregada de “conscientizar”
os indivíduos, não está encarregada de criar a consciência verdadeira para
opô-la à consciência falsa, e com isto mudar o mundo. A teoria está encarregada de desvendar os
processos reais e históricos enquanto resultados e enquanto condições da
prática humana em situações determinadas, prática que dá origem à existência e
à conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. A teoria está
encarregada de apontar os processos objetivos que conduzem à exploração e à
dominação e aqueles que podem conduzir à liberdade. (pp. 80-81). (destaques
nossos).
Percebemos, então, que
a teoria – ao contrário da ideologia – não está encarregada de tomar o lugar da
prática, fazendo a realidade depender das idéias. Também não está encarregada
de guiar a prática, fazendo com que a atividade histórica dependa da
consciência “verdadeira”. E também não está encarregada de se inutilizar
enquanto teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação prática
reproduz a prática alienada. (p. 81). (destaques nossos).
RELAÇÃO
TEORIA-PRÁTICA
A relação entre teoria
e prática é revolucionária porque é dialética. Vimos que a dialética é o
movimento das contradições e que a contradição é a existência de uma relação de
negação interna entre termos que só existem graças a essa negação. Que significa
dizer que a relação entre teoria e prática é dialética e não ideológica (como aquela relação que mostramos
ser feita pelos positivistas)? A relação
entre teoria e prática é uma relação simultânea e recíproca por meio da qual a
teoria nega a prática enquanto prática imediata, isto é, nega a prática como um
fato dado para revelá-la em suas mediações e como práxis social, ou seja, como
atividade socialmente produzida e produtora da existência social. A teoria nega
a prática como comportamento e ação dados, mostrando que se trata de processos
históricos determinados pela ação dos homens que, depois, passam a determinar
suas ações. Revela o modo pelo qual criam suas condições de vida e são, depois,
submetidos por essas próprias condições. (pp. 81-82). (destaques nossos).
A prática, por sua vez,
nega a teoria como um saber separado e autônomo, como puro movimento de idéias
se produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos. Nega a teoria como um
saber acabado que guiaria e comandaria de fora a ação dos homens. E negando a
teoria enquanto saber separado do real que pretende governar esse real, a
prática faz com que a teoria se descubra como conhecimento das condições reais
da prática existente, de sua alienação e de sua transformação. Por isso Marx e Engels afirmam que conhecem
um único tipo de saber: a ciência da história.” (p. 82). (destaques
nossos).
CONCEPÇÃO DO
MOVIMENTO HISTÓRICO DENTRO DA IDEOLOGIA
““Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido
completamente a base real da história (forças de produção, capitais, divisão
social do trabalho, propriedade, formas sociais de intercâmbio que cada geração
encontra como produto da geração precedente e que a atual reproduz e
transforma, alterando a forma da luta de classes), ou a tem considerado como
algo secundário, sem qualquer conexão com o curso da história. Isto faz com que
a história deva sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora dela.
A produção da vida real como algo separado da vida comum, como algo extra e
supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a Natureza é excluída da
História, o que engendra a oposição entre Natureza e História.
Consequentemente, tal concepção apenas vê na História as ações políticas dos
Príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e
vê-se obrigada a compartilhar, em
cada época, a ilusão dessa época. Por
exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente “políticos”
ou “religiosos”, embora a “política” e a “religião” sejam apenas formas
aparentes de seus motivos reais, então o historiador dessa época considerada
aceita essa opinião. A “imaginação”, a “representação” que homens historicamente
determinados fizeram de sua práxis real transforma-se, na cabeça do
historiador, na única força determinante e ativa que domina e determina a
práxis desses homens. (...). (pp. 82-83)
Uma vez postas como forças históricas motrizes aquelas forças
(políticas, religiosas, culturais, etc.) que, na verdade são determinadas pelas
forças reais, todo o processo histórico fica invertido ou de ponta-cabeça. Assim, acontecimentos históricos
posteriores são convertidos na “finalidade” da história anterior. É o que
ocorre quando se explica a descoberta da América como um acontecimento que teve
por finalidade auxiliar o surgimento da Revolução Francesa. Ou quando se
explica o episódio da Inconfidência Mineira como tendo a finalidade de preparar
o da Independência. (pp. 84-85). (destaques nossos).
Na medida em que as
forças reais, que explicam o processo de surgimento de um acontecimento
permanecem ignoradas ou escondidas, o historiador-ideólogo inventa causas e
finalidades que acabam convertendo a história numa entidade autônoma que possui
seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando os homens como seus
instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da realidade histórica e diante
da idéia da história. (p. 84). (destaques nossos).
É assim, por exemplo, que a ideologia burguesa tende a
explicar a história através da idéia de progresso. Como a burguesia se vê a si
mesma como uma força progressista, porque usa as técnicas e as ciências para um
aumento total do controle sobre a Natureza e a sociedade, considera que todo o
real se explica em termos de progresso. O historiador-ideólogo constrói a idéia
de progresso histórico concebendo-o como a realização, no tempo, de algo que já
existia antes de forma embrionária e que se desenvolve até alcançar seu ponto
final necessário. Visto que a finalidade do processo já está dada (isto é, já
se sabe de antemão qual vai ser o futuro), e visto que o progresso é uma “lei”
da história, esta irá alcançar necessariamente o fim conhecido. Com isto, os homens se tornam instrumentos ou meios para a “história”
realizar seus fins próprios e são justificadas todas as ações que se realizam
“em nome do progresso”. (pp. 84-86). (destaques nossos).
Dessa maneira, não só
os acontecimentos históricos são explicados de modo invertido (o fim explica o
começo), mas tal “explicação” ainda permite que a classe dominante justifique
suas ações, fazendo-as aparecer como “razões da história”. Atribui-se à
história uma racionalidade que é apenas a legitimação dos dominantes.” (p. 85). (destaques nossos).
CONCEPÇÃO DO
MOVIMENTO HISTÓRICO SEGUNDO O MATERIALISMO HISTORICO-DIALÉTICO
“Se a
história é o processo prático pelo qual homens determinados em condições
determinadas estabelecem relações sociais por meio das quais transformam a
Natureza (pelo trabalho), se dividem em classes (pela divisão social do
trabalho que determina a existência de proprietário e de não proprietários),
organizam essas relações através das instituições e representam suas vidas
através das idéias, e se a história é da luta de classes, luta que fica
dissimulada pelas idéias que representam os interesses contraditórios como se
fossem interesses comuns de toda a sociedade (através da ideologia e do
Estado), então a história é também o processo de dominação de uma parte da
sociedade sobre todas as outras.” (p. 85). (destaques nossos).
IDEOLOGIA
“Isto significa que,
em termos do materialismo histórico e dialético, é impossível compreender a
origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a
ideologia é um dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas da luta
de classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a
dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados.
A peculiaridade da ideologia e que a transforma numa força
quase impossível de remover decorre dos seguintes aspectos:
1)
o que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as idéias existem em si e
por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e
trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores.
Portanto, enquanto esses dois trabalhos
estiverem separados, enquanto o trabalhador for aquele que “não pensa” ou que
“não sabe pensar”, e o pensador for aquele que não trabalha, a ideologia não
perderá sua existência nem sua função; (p. 86). (destaques nossos).
2)
o que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto é, o fato de que, no plano da
experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos
homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se
percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida
social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses,
Natureza, Razão, Estado, destino, etc.), de sorte que as idéias quotidianas dos
homens representam a realidade de modo invertido e são conservadas nessa
inversão, vindo a constituir os pilares para a construção da ideologia.
Portanto, enquanto não houver um
conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática
imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem
crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá; (pp. 86-87). (destaques
nossos).
3)
o que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma
classe sobre as outras. Porém, o
que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de
que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade
ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce para fazer com que os
homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas
entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o
Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se
submetam. Ora, como a
experiência vivida imediata e a alienação confirmam tais idéias, a ideologia
simplesmente cristaliza em “verdades” a visão invertida do real.
Seu papel é fazer com
que no lugar dos dominantes apareçam idéias “verdadeiras”.
Seu papel também é o de
fazer com que os homens creiam que tais idéias representam efetivamente a
realidade.
E, enfim, também é seu
papel fazer com que os homens creiam que essas idéias são autônomas (não
dependem de ninguém) e que representam realidades autônomas (não foram feitas
por ninguém). (pp.
87-88). (destaques nossos).
Assim, por exemplo, na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma relação
social que assume formas, funções e sentidos diferentes tanto em decorrência
das condições históricas quanto em decorrência da situação de cada classe
social na sociedade. Pelo contrário, a família é representada
como sendo sempre a mesma (no tempo e para todas as classes) e,
portanto, como uma
realidade natural (biologia), sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna
(sempre existiu e sempre existirá), moral (a vida boa, pura, normal, respeitada) e pedagógica
(nela se aprendem as regras da verdadeira convivência entre os homens, com o
amor dos pais pelos filhos, com o respeito e temor dos filhos pelos pais, com o
amor fraterno). Estamos, pois, diante da idéia da família e não diante da realidade
histórico-social da família. (p. 88). (destaques nossos).
Ou, então, quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as condições reais de
trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens em benefícios de
uns poucos. Estamos diante da idéia de trabalho e não diante da
realidade histórico-social do trabalho.
Ou, então, quando se diz que os homens são livres por natureza e que exprimem essa liberdade
pela capacidade de escolher entre coisas ou entre situações dadas, sem que se
analise quais coisas e quais situações são dadas para que os homens escolham.
Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente escolher o que
desejarem? O nordestino, vítima da seca e do proprietário das terras, realmente
“escolhe” vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? O peão metalúrgico
“escolheu” livremente fazer horas-extras depois de 12 horas de trabalho? A
menina grávida que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe” fazer um
aborto? A definição da liberdade como igual direito à escolha é a idéia
burguesa da liberdade e não a realidade
histórico-social da liberdade. (pp. 88-89). (destaques nossos).
Dissemos que a ideologia é resultado da luta de classes e
que tem por função esconder a existência dessa luta. Podemos
acrescentar que o poder ou a eficácia da ideologia aumentam quanto maior for sua
capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de
classes.” (pp. 89-90). (destaques nossos).
“A divisão
social do trabalho, ao separar os homens em proprietários e não proprietários,
dá aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e
dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de
uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter
seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de
instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a ideologia.
Através do Estado, a
classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe
permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras
políticas. O grande instrumento do Estado
é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais
em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como
legal, ou seja, como “Estado de direito”. O
papel do Direito ou das leis é o de fazer com eu a dominação não seja tida como
uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita.
A lei é o direito para o dominante e dever para o
dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua
realidade real, isto é, como instrumentos para o
exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam
respeitados e os dominados se revoltariam. A função da
ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo,
isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do
Estado pela idéia do Estado – ou
seja, a dominação de uma classe é substituída pela
idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade
do Direito pela idéia do Direito – ou
seja, a dominação de uma classe por meio das leis é
substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas,
boas e válidas para todos.” (p. 91). (destaques nossos).
“Não se trata de supor que os dominantes se reúnam e decidam
fazer uma ideologia, pois esta seria, então, uma pura maquinação diabólica dos
poderosos. E, se assim fosse, seria muito fácil acabar com uma ideologia.
A ideologia resulta da
prática social, nasce atividade social dos homens no momento em que estes
representam para si mesmos essa atividade, e vimos que essa representação é
sempre necessariamente invertida. O que ocorre, porém, é o seguinte processo: as diferentes
classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como é
vivido diretamente por elas, de sorte que as representações ou idéias (todas
elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo
as experiências que cada uma delas tem de sua existência nas relações de
produção. No entanto, as idéias dominantes em uma sociedade numa época
determinada não são todas as idéias
existentes nessa sociedade, mas serão apenas
as idéias da classe dominante dessa sociedade nessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante
representa a si mesma (sua idéia a respeito de si mesma), representa sua
relação com a Natureza, com os demais homens, com a sobrenatureza (deuses), com
o Estado, etc., tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar. (p. 92).
(destaques nossos).
A ideologia é
o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de todas as
classes sociais, se tornam idéias dominantes. (...).(p. 92). (destaques nossos).
Na Ideologia Alemã, lemos: “As idéias da
classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que
é a força material dominante da
sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual.
A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao
mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam
submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os
meios de produção espiritual. As idéias dominantes nada mais são
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações
materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações
que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a
classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso,
pensam. Na medida em que dominam como
classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o
façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem
também como pensadores, como produtores de idéias; que regulem a
produção e distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por
isso mesmo, as idéias dominantes da época.” (p. 93) (Citação da autora, destaques
nossos).
A ideologia
consiste precisamente na transformação das idéias da classe dominante em idéias
dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no
plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual
(das idéias). (p.
93-94). (destaques nossos).
Isto significa que:
1) embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual
devesse ter suas próprias idéias, a dominação de uma classe sobre as outras faz
com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as idéias da
classe dominante;
2) para que isso ocorra, é preciso que os
membros não percebam como estando divididos em classes, mas se
vejam como tendo certas características humanas comuns a todos e que tornam as
diferenças sociais algo derivado ou de menor importância;
3) para que todos os membros da sociedade se
identifiquem com essas características supostamente comuns a todos, é preciso
que elas sejam convertidas em idéias comuns a todos. Para que isto ocorra é
preciso que a classe dominante, além de produzir suas próprias idéias, também
possa distribuí-las, o que é feito, por exemplo, através da educação, da
religião, dos costumes, dos meios de comunicação disponíveis;
4) como tais idéias não exprimem a
realidade real, mas representam a aparência social, as imagens das coisas e dos homens, é
possível passar a considerá-las como independentes da realidade e, mais do que
isto, inverter a relação fazendo com que a realidade concreta seja tida como a
realização dessas idéias.” (p. 94). (destaques nossos).
UNIVERSAIS
ABSTRATOS
“Todos esses procedimentos consistem naquilo que é a operação intelectual por excelência da
ideologia: a criação de universais
abstratos, isto é, a transformação das idéias particulares da classe
dominante em idéias universais de todos e para todos os membros da sociedade.
Essa universalidade das idéias é abstrata porque não corresponde a nada real e
concreto, visto que no real existem concretamente classes particulares e não a
universalidade humana. As idéias da ideologia são, pois, universais abstratos.”
(p. 95). (destaques nossos).
QUEM SÃO OS
IDEÓLOGOS
“Os ideólogos são
aqueles membros da classe dominante ou da classe média (aliada natural da
classe dominante) que, em decorrência da divisão social do trabalho em trabalho
material e espiritual, constituem a camada dos pensadores ou dos intelectuais.
Estão encarregados, por meio da sistematização das idéias, de transformar as
ilusões da classe dominante (isto é, a visão que a classe dominante tem de si
mesma e da sociedade) em representações coletivas ou universais. Assim, a
classe dominante (e sua aliada, a classe média) se divide em pensadores e não
pensadores, ou em produtores ativos de idéias e consumidores passivos de idéias. (p. 95). (destaques nossos).
Muitas vezes, no interior da classe dominante e de sua
aliada, a divisão entre pensadores e não pensadores pode assumir a forma de
conflitos – por exemplo, entre nobres e sacerdotes, entre burguesia
conservadora e intelectuais progressistas -, mas tal conflito não é uma
contradição, não exprime a existência de duas classes sociais contraditórias,
mas apenas oposições no interior da mesma classe. A prova disso, escrevem Marx e
Engels, é que basta haver uma ameaça real para a dominação da classe dominante
para que os conflitos sejam esquecidos e todos fiquem do mesmo lado da
barricada. Nessas ocasiões, “desaparece a ilusão de que as idéias dominantes
não são as idéias da classe dominante e que teriam um poder diferente do poder
dessa classe”. (pp. 95-96). (destaques nossos).
Assim, por exemplo, é possível que, em determinadas
circunstâncias históricas, os intelectuais se coloquem contra a burguesia e se
façam aliados dos trabalhadores. Se os trabalhadores, compreendendo a origem da
exploração econômica e da dominação política, decidirem destruir o poder dessa
burguesia, é possível que os intelectuais progressistas, sem o saber, passem
para o lado da burguesia. É o que ocorre, por exemplo, quando, diante
do aguçamento da luta de classes num país, os intelectuais demonstram aos
trabalhadores que, naquela fase histórica, o verdadeiro inimigo não é a
burguesia nacional, mas a burguesia internacional imperialista, e que se deve
lutar primeiro contra ela. A ideologia da unidade nacional, que os intelectuais
progressistas, de boa-fé, imaginam servir aos trabalhadores, na verdade serve à
classe dominante. (p. 96). (destaques nossos).
Por que isto ocorre? Do
lado dos intelectuais, isto decorre do
fato de que interiorizam de tal modo as idéias dominantes que não percebem o que
estão pensando. Do lado dos trabalhadores, se aceitam tal ideologia nacionalista, isto decorre da divisão social
do trabalho que foi interiorizada por eles, fazendo-os crer que não sabem
pensar e que devem confiar em quem pensa. Com isto, também eles são vítimas do
poder das idéias dominantes.” (pp. 96-97). (destaques nossos).
HEGEMONIA
“Esse fenômeno de
manutenção das idéias dominantes mesmo quando se está lutando contra a classe
dominante é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante. Por isso
ele dizia que, se num determinado momento, os trabalhadores de um país precisam
lutar usando a bandeira do nacionalismo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a idéia de nação, desfazer-se da idéia burguesa
de nacionalidade e elaborar uma idéia do nacional que seja idêntica à de
popular. Precisam, portanto, contrapor, à idéia dominante de nação, uma
outra, popular, que negue a primeira.” (p. 97). (destaques nossos).
HISTÓRIA+UNIVERSAIS
ABSTRATOS+CONTROLE+INTERPRETAÇÃO
“Uma história concreta não perde de vista a origem de classe
das idéias de uma época, nem perde de vista que a ideologia nasce para servir
aos interesses de uma classe e que só pode fazê-lo transformando as idéias
dessa classe particular em idéias universais. (p. 97). (destaques nossos).
Não perde de
vista, também, que a produção e distribuição dessas idéias ficam sob controle
da classe dominante, que usa as instituições sociais para sua implantação –
família, escola, igrejas, partidos políticos, magistraturas, meios de
comunicação da cultura, permanecem atrelados à conservação do poder dos
dominantes. (pp.
97-98). (destaques nossos).
(Caso
isso não ocorra, pode-se interpretar, por exemplo, que:) (...) no mundo capitalista, as
relações entre os indivíduos são determinadas pela compra e venda da
força-de-trabalho no mercado, estabelecendo-se entre as partes (proprietários e
assalariados) um contrato de trabalho. Ora, o pressuposto jurídico da idéia
de contrato é que as partes sejam iguais e livres, de sorte que não apareça o
fato de que uma das partes não é igual à outra, nem é livre. A realização de relações econômicas,
sociais e políticas baseadas na idéia de contrato leva à universalização
abstrata das idéias de igualdade e de liberdade. (pp.98-99). (destaques
nossos).
O processo histórico
real, escrevem Marx
e Engels, não é o do predomínio de certas idéias em certas épocas, mas ou
outro e que é o seguinte: cada nova classe em ascensão que começa a se desenvolver
dentro de um modo de produção que será destruído quando essa nova classe
dominar, cada classe emergente, dizíamos, precisa formular seus interesses de
modo sistemático e, para ganhar o apoio do restante da sociedade contra a
classe dominante existente, precisa fazer com que tais interesses apareçam como
interesses de toda a sociedade. Assim, por exemplo, a burguesia, ao elaborar as idéias de
igualdade e de liberdade como essência do homem faz com que se coloquem de seu
lado como aliados todos os membros da sociedade feudal submetidos ao poder da
nobreza, que encarnava o princípio da desigualdade e da servidão. (p. 99).
(destaques nossos).
Para poder ser o representante de
toda a sociedade contra uma classe
particular que está no poder, a nova classe emergente precisa dar às suas
idéias a maior universalidade possível, fazendo com que apareçam como
verdadeiras e justas para o maior número possível de membros do sociedade. Precisa apresentar tais idéias como as
únicas racionais e as únicas válidas para todos. Ou seja, a classe ascendente não pode aparecer como uma classe
particular contra outra classe particular, mas precisa aparecer como
representante de toda a sociedade, dos interesses de todos contra os interesses
da classe particular dominante. E
consegue aparecer assim universalizada graças às idéias que defende como
universais. (pp.
99-100). (destaques nossos).
No início do processo de ascensão é verdade que a nova classe
representa um interesse coletivo: o interesse de todas as classes não
dominantes.
Porém, uma vez alcançada a vitória e a classe ascendente tornando-se classe
dominante, seus interesses passam a ser
particulares, isto é, são apenas seus interesses de classe (isso porque, os
interesses anteriormente percebidos como universais, não podem se materializar
universalmente, ou seja, não podem se materializar para todos, pois isso
ultrapassaria o objetivo original da classe emergente tirando da mesma a
possibilidade de tornar-se dominante). No entanto, agora, tais interesses precisam ser mantidos com a
aparência de universais, porque precisam legitimar o domínio que exerce sobre o
restante da sociedade. Em uma palavra: as idéias universais da ideologia
não são uma invenção arbitrária ou diabólica, mas são a conservação de uma
universalidade que já foi real num certo momento (quando a classe ascendente
realmente representava os interesses de todos os não dominantes), mas que agora é uma universalidade ilusória
(pois a classe dominante tornou-se representante apenas de seus interesses
particulares). (pp. 100-101). (destaques nossos).
“Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma
base mais extensa do que a classe que até então dominava, ao passo que, mais tarde, a
oposição entre a nova classe dominante e a não dominante se agrava e se
aprofunda ainda mais.” Isto significa que cada
nova classe dominante, enquanto estava em ascensão, apontava para a
possibilidade de um maior número de indivíduos exercerem a dominação e, por
isso, quando
toma o poder, usa de procedimentos mais radicais do que os já existentes para
afastar as possibilidades de exercício do poder por parte dos dominados.
Por isso a distância entre dominantes e dominados aumenta ainda mais e os dominados, afinal, terão que lutar pelo
término de toda e qualquer forma de dominação.” (p. 101) (Citação da autora
e destaques nossos).
“Estamos agora em condições de compreender as determinações gerais da ideologia (recordando que determinação significa: características
intrínsecas a uma realidade e que foram sendo produzidas pelo processo que deu
origem a essa realidade). Podemos agora compreender o que é a ideologia porque
acompanhamos o processo que a produz concretamente. (p. 101).
(destaques nossos).
As principais
determinações que constituem o fenômeno da ideologia são:
1) a ideologia é resultado da divisão social do trabalho e, em particular, da separação entre
trabalho material/manual e trabalho espiritual/intelectual; (p.
102). (destaques nossos).
2) essa separação dos trabalhos estabelece a
aparente autonomia do trabalho intelectual face ao trabalho material;
3) essa autonomia aparente do trabalho intelectual
aparece como autonomia dos produtores desse trabalho, isto é, dos pensadores:
4) essa autonomia dos produtores do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtos desse trabalho, isto
é, das idéias;
5) essas idéias autonomizadas são as idéias da
classe dominante de uma época e tal autonomia é produzida no momento em
que se faz uma separação entre os indivíduos que dominam e as idéias que
dominam, de tal modo que a dominação de homens sobre
homens não seja percebida porque aparece como dominação das idéias sobre todos
os homens;
6) a ideologia é, pois, um instrumento de dominação de classe e, como tal, sua origem é a existência da divisão
da sociedade em classes contraditórias e em luta; (p. 102). (destaques nossos).
7) a divisão da sociedade em classes se realiza como separação
entre proprietários e não proprietários das condições e dos produtos do
trabalho, como divisão entre exploradores e explorados, dominantes e dominados e, portanto, se realiza como luta de classes.
Esta não deve ser entendida apenas como os momentos de confronto armado entre
as classes, mas como o conjunto de procedimentos
institucionais, jurídicos, políticos, policiais, pedagógicos, morais,
psicológicos, culturais, religiosos, artísticos, usados pela classe dominante
para manter a dominação. E como todos os procedimentos dos dominados para
diminuir ou destruir essa dominação. A ideologia é um instrumento de dominação
de classe; (pp.
102-103). (destaques nossos).
8) se a dominação e a exploração de uma classe for perceptível como
violência, isto é, como poder injusto e ilegítimo,
os explorados e dominados se sentem no justo e legítimo direito de recusá-la,
revoltando-se. Por este motivo, o papel específico da
ideologia como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e a
exploração sejam percebidas em sua realidade concreta. Para tanto, é função da ideologia dissimular e ocultar a existência das
divisões sociais como divisões de classes, escondendo, assim, sua própria
origem. Ou seja, a ideologia esconde que nasceu
da luta de classes para servir a uma classe na dominação;
9) por ser o instrumento encarregado de ocultar
as divisões sociais, a ideologia deve transformar as
idéias particulares da classe dominante em idéias universais, válidas
igualmente para toda a sociedade; (p. 103). (destaques nossos).
10)
a universalidade dessas
idéias é abstrata, pois no concreto existem idéias particulares de cada classe. Por ser uma abstração, a ideologia constrói uma
rede imaginária de idéias e de valores que possuem uma base real (a divisão
social), mas de tal modo que essa base seja reconstruída
de modo invertido e imaginário; (pp. 103-104). (destaques nossos).
11)
a ideologia é uma ilusão,
necessária à dominação de classe. Por ilusão não devemos
entender “ficção”, “fantasia”, “invenção gratuita e arbitrária”, “erro”,
“falsidade”, pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e
outras que seriam verdadeiras e corretas. Por ilusão
devemos entender: abstração e inversão. Abstração (como vimos
anteriormente) é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa
experiência imediata, como algo dado, feito e acabado que apenas classificamos,
ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal
realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque
mediata, isto é, porque produzida por um sistema determinado de condições que
se articulam internamente de maneira necessária. Inversão
(como também vimos anteriormente) é tomar o resultado de um processo
como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as conseqüências pelas
premissas, o determinado pelo determinante. Assim, por
exemplo, quando os homens admitem que são desiguais porque Deus ou a Natureza
os fez desiguais, estão tomando a desigualdade como causa de sua situação
social e não como tendo sido produzida pelas relações sociais e, portanto, por
eles próprios, sem que o desejassem e sem que o soubessem; (p. 104). (destaques nossos).
12)
porque a ideologia é ilusão, isto é,
abstração e inversão, ela permanece sempre no plano
imediato do aparecer social. Ora,
como vimos, ao falarmos do fetichismo da mercadoria, o aparecer social é o modo
de ser do social de ponta-cabeça. A aparência social
não é algo falso e errado, mas é o modo como o processo social aparece para a
consciência direta dos homens. Isso significa que uma ideologia sempre possui
uma base real, só que essa base está
de ponta-cabeça, é a aparência
social. Assim, por exemplo, a sociedade burguesa aparece em nossa
experiência imediata como estando formada por três tipos diferentes de
proprietários: o capitalista, proprietário do capital; o dono da terra,
proprietário da renda da terra; e o trabalhador, proprietário do salário. Se
todos são proprietários, embora de coisas diferentes, então todos os homens
dessa sociedade são iguais e possuem iguais direitos. Enquanto não
ultrapassarmos essa aparência e procurarmos o modo como realmente e
concretamente são produzidos esses proprietários pelo sistema capitalista, não
poderemos compreender que o salário não é propriedade do trabalhador, mas é o
trabalho não pago pelo capitalista, que a renda não vem da terra, mas de sua
transformação em capital pelo trabalho não pago do camponês ou dos mineiros, e
que, finalmente, só o capital é efetivamente propriedade. Enquanto não tivermos
essa compreensão histórica do processo real, a idéia de igualdade não só parecerá verdadeira, mas ainda possuirá
base real, ou seja, a maneira pela qual os homens aparecem no modo de produção
capitalista. É neste sentido que se deve entender a ideologia como ilusão,
abstração e inversão;
(pp. 104-106). (destaques nossos).
13)
a ideologia não é um
“reflexo” do real na cabeça dos homens, mas o modo ilusório (isto é, abstrato e
invertido) pelo qual representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a
realidade social.
(CHAUI,
Marilena. O que é ideologia, 35ª ed. (Coleção Primeiros Passos).São Paulo:
Brasiliense, 1992.)
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