A
MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS PESQUISAS DA ÁREA
DE EDUCAÇÃO NO BRASIL – SINPRO-DF
Com
o tema A militarização das escolas públicas: uma análise a partir das pesquisas da área de educação no Brasil,
Miriam Fábia Alves e Mirza Seabra Toschi apresentam os resultados de uma
pesquisa bibliográfica acerca da militarização das escolas públicas no Brasil.
Foram consultadas as bases de dados: Portal de Periódicos da Capes; Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações; Google Acadêmico. A partir do
levantamento emergiram questões relativas à gestão militarizada e suas
interferências na prática pedagógica, a formatação de um modelo de escola que
prioriza a disciplina e o controle, a relação de dependência entre a melhora do
desempenho escola e as características dos estudantes.
Este
artigo, o quarto da série, é uma sequência dos trabalhos e estudos sobre o
processo de militarização na educação pública brasileira e todos os transtornos
que eles causam.
Esta
série de trabalhos é produzido pela Revista Brasileira de Política e
Administração da Educação, periódico científico editado pela Associação
Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), e tem o objetivo de
difundir estudos e experiências educacionais, promovendo o debate e a reflexão
em torno de questões teóricas e práticas no campo da educação.
O
sindicato recomenda a leitura deste material para todos(as) os(as)
professores(as) que tiverem interesse em aproveitar os trabalhos para
pesquisas.
Confira
abaixo o trabalho na íntegra:
O
tema da militarização das escolas públicas, ou seja, a transferência da gestão
de escolas públicas para a Corporação da Polícia Militar entrou em outra fase
com a posse do presidente Jair Bolsonaro e a defesa das escolas cívico militares
como modelo a ser seguido pela escola pública brasileira. Essa opção do governo
federal ensejou a criação, no Ministério da Educação (MEC), de uma subsecretaria
para fomentar a implantação dessas escolas nas redes públicas, que passaram a
ser consideradas pelo MEC como “modelo de escola de alto nível” que segue
“padrões de ensino e modelos pedagógicos empregados nos colégios militares do
Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares” (BRASIL,
2019, p.11 ). A assunção desse modelo por parte do MEC representa um salto no
processo de militarização das escolas públicas, uma vez que, de experiência
isolada em alguns estados, passa a ser apresentado como política a seradotada
em todo o país. No cenário de crescente conservadorismo que toma a sociedade
brasileira, a militarização vai ganhando proporções assustadoras e nos indica a
urgência de promover debates, pesquisas e publicações que possam desvelar os
impactos desse processo na formação de crianças, adolescentes e jovens
brasileiros. Essa realidade nos instigou a produzir uma pesquisa bibliográfica
sobre a militarização nas publicações brasileiras, buscando analisar o que o
campo educacional tem compreendido, pesquisado e publicado sobre o assunto. Tal
empreitada se deve ao fato de não ter sido encontrado qualquer levantamento
relativo a essa temática, ou seja, as autoras não localizaram estudos
relacionados ao estado do conhecimento, ou estado da arte, ou levantamento
bibliográfico específico sobre a militarização das escolas. Para realizar o
levantamento fomos aos seguintes bancos de dados: Portal de Periódicos da
Capes, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e Google
Acadêmico. A exposição do resultado da pesquisa foi organizada em duas partes:
na primeira apresentamos o quadro geral do levantamento feito e, na segunda, a
análise dos principais achados.
O
CONHECIMENTO PRODUZIDO SOBRE A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS
O
modelo de gestão militar da escola com atuação das corporações militares
estaduais antecede a 1998; no entanto, a transferência de escolas públicas estaduais,
que estavam em funcionamento, para a gestão da PM é um fenômeno iniciado em
Goiás, em 1998, quando o governo Marconi Perillo, criou e instalou um colégio
militar, amparado numa lei de 1976, para oferecer educação exclusiva para os
dependentes dos militares. (ALVES; TOSCHI; FERREIRA, 2018). Esse processo de
militarização se expandiu a partir dos anos 2010, ganhou adesão de outros
estados da federação, e os dados indicam que o número de escolas militarizadas
saltou de 93 em 2015, para 120 em 2018, espalhadas por, pelo menos, 22 estados.
(SALDAÑA, 2019). Das 120 escolas militarizadas em 2018, quase metade pertence
ao estado de Goiás, que possuía 55 escolas nesse modelo. Considerando o nosso
objeto de estudo, a militarização das escolas públicas e o corte cronológico de
sua implantação a partir dos anos 2000, buscamos a produção acadêmica
disponível sobre o tema. A pesquisa que fizemos nos bancos de dados se pautou
por uma compreensão da militarização como processo de transferência da gestão
das escolas estaduais para a corporação da Polícia Militar, que implanta um
modelo de escola semelhante aos quartéis: rígida disciplina, uso de
uniforme/farda, ritos da PM, ensino de civismo. Esses balizadores guiaram nossa
busca nos portais selecionados. Conhecer e mapear os estudos sobre a
militarização na educação brasileira foi a atividade inicial dessa reflexão;
por isso, definimos como descritores a) militarização de escolas; b)
militarização da educação; c) escolas militares; d) militarização and escolas
públicas; e) colégios da Polícia Militar. A busca das produções acadêmicas foi
realizada na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), no
Portal de Periódicos da Capes e no Google Acadêmico, utilizando os mesmos
descritores nos três repositórios. O objetivo era saber como o conhecimento
sobre a crescente instalação de colégios militares no país estava se
desenvolvendo e quais aspectos eram mais abordados nos estudos. A busca no
portal de periódicos da Capes localizou uma produção mais expressiva com o
buscador ‘escolas militares’, que localizou 58 artigos. Ao realizar a leitura
dos resumos, retiramos os artigos que não abordavam o tema diretamente e diziam
respeito, de forma mais expressiva, aos colégios militares da rede federal do
Sistema Colégio Militar do Brasil (do Exército), por se tratar de outra experiência
de escola. Feita essa seleção inicial, identificamos apenas cinco artigos que
tratavam do fenômeno da militarização das escolas públicas. São artigos dos anos
de 2018 e 2019, indicativos de que muito recentemente o tema começou a ocupar
espaço nas revistas brasileiras. Desses, um discute o tema da militarização em
Goiás, outro, no Tocantins e outro, na cidade de Campo Grande. Dois artigos tratam
de experiências específicas nas escolas militarizadas, relatando as práticas docentes
na Educação Física e uma experiência de educação ambiental em escolas militarizadas
de Goiás. Podemos dizer que a captura feita nesse portal sugere um longo caminho
a percorrer no que diz respeito à divulgação do conhecimento sobre esse tema
nos periódicos brasileiros. Na busca realizada na Biblioteca Digital Brasileira
de Teses e Dissertações (BDTD) foram encontradas oito dissertações e sete
teses. Quatro livros foram encontrados no Google Acadêmico e, também, quatro
dissertações, duas teses e 18 artigos. Um dos livros tratava da militarização
na burocracia, outro sobre a Educação no Estado Novo, outro sobre os militares
e a República. O livro intitulado ‘Estado de Exceção Escolar: uma avaliação
crítica das escolas militarizadas’, organizado por Ian Caetano de Oliveira
Victor e Hugo Viegas de Freitas Silva, contém seis textos sobre a militarização
das escolas. Há um número especial, do ano de 1998, da revista Cadernos de
Pesquisa, sobre ‘A instituição escolar e a violência’, no qual não consta
qualquer artigo sobre a militarização. Dos 18 textos localizados, muitos se
referiam às mesmas teses/dissertações achadas. Vinte e um estudos se referiam à
militarização em Goiás, mas também foram encontrados estudos sobre escolas
militares em outros estados, como: São Paulo (dois), Pernambuco (dois), Rio
Grande do Sul (três), Ceará (três) e Minas Gerais, Distrito Federal e Sergipe,
com um trabalho em cada. Importa ressaltar que a busca realizada, utilizando os
descritores já apresentados, permitiu filtrar trabalhos que tratam de
experiências distintas, como é o caso de São Paulo em que a instituição
analisada é privada, criada, segundo Silva (2008) para atender os dependentes
dos policiais militares de São Paulo. Outro caso analisado foi um dos Colégios
Tiradentes da Polícia, de Minas Gerais (OLIVEIRA, 2017) que são instituições
públicas de ensino vinculadas as corporações das polícias militares e que estão
presentes em 23 estados da federação. Para a elaboração desse artigo não foram
levadas em conta as inúmeras matérias de revistas semanais e jornais, uma vez
que o caráter factual dessas não inclui a crítica acadêmica a partir da análise
científica, como acontece nas teses, dissertações, artigos de livros e textos
de revistas científicas, fugindo, portanto, ao escopo do objetivo proposto para
este artigo. Os estudos bibliográficos fornecem dados atuais e relevantes que
dão sustentação a novas abordagens da temática, uma vez que estudos de um mesmo
tema, sob diferentes pontos de vista, possibilitam a ampliação do conhecimento de
determinado assunto. Nessa perspectiva, selecionamos alguns achados que nos
permitem analisar o fenômeno da militarização e que, também, indicam possibilidades
de novas pesquisas.
ACHADOS
DA PESQUISA – A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS EM ANÁLISE
A
produção de novos saberes sobre a militarização da educação só pode ser feita
levando-se em conta os estudos já realizados sobre esse tema. Para produzir a
análise contida neste texto, selecionamos e fizemos a leitura dos resumos de
todas as teses e dissertações e, também, dos textos encontrados. Os textos
lidos referiam-se a estudos, reflexões, pesquisas sobre a história e o processo
de militarização de escolas, sobre a disciplina militar adentrando na educação
escolar, a estrutura hierarquizada dessas escolas, a gestão militarizada, a
relação entre violência e militarização, e a relação entre desempenho escolar e
gestão militar. Considerando o potencial das pesquisas bibliográficas no
sentido de permitir que se identifiquem as tendências dos estudos e as lacunas
que ainda persistem, constatamos que, em relação ao tema em debate, a tendência
dos estudos, verificada em grande parte dos trabalhos, é abordar a questão da
gestão da escola sugerindo que este tem sido um dos elementos mais impactantes
para o cotidiano escolar, uma vez que ocorrem mudanças do padrão de liberdade
civil. que é substituída por uma acentuada hierarquia militar – como se a
função da escola básica fosse formar soldados para atuar em situação de guerra.
O título da dissertação de Cruz (2017), ‘Militarização das escolas públicas em
Goiás: disciplina ou medo?’ aponta para isso. Nesse estudo, a autora conclui
que há uma cobrança exacerbada da disciplina nos colégios militares e, como
consequência, um medo gerado nos estudantes que funciona como estratégia de
controle que ignora a pluralidade e a subjetividade dos indivíduos. Santos
(2016), que igualmente estudou o movimento de militarização das escolas
públicas em Goiás, observa que a mudança de gestão modifica a estrutura das
escolas, transformando-as, de espaços democráticos e de acesso para todos, em
espaços com estrutura militarizada e seletiva. Em se tratando da seletividade
da escola militarizada, Santos (2016) ressalta que nem todos os alunos que
necessitam ou escolhem a escola pública podem estudar em colégio militarizado,
devido aos custos das mensalidades, travestidas de ‘doação espontânea’, e caros
uniformes, que, na verdade, são fardas, como as usadas pelos soldados da
Polícia Militar ou do Exército.
A
partir desses estudos, é possível depreender que uma das narrativas utilizadas
para justificar a militarização das escolas, ou seja, de que é possível separar
gestão e prática pedagógica, não é comprovada nas experiências analisadas. A
gestão da escola entregue a um terceiro, nesse caso, à polícia militar, faz com
que a comunidade escolar vivencie novas práticas educativas, que interferem no
aspecto organizacional e pedagógico. Ou seja, não é possível isolar a gestão, o
modo de organização escolar, sem causar impactos no projeto formativo da escola
pública. O cotidiano da escola militarizada reforça os aspectos visíveis da
escola, aqui compreendidos na perspectiva de Nóvoa (1995), para quem há uma
cultura própria nas instituições escolares que possuem aspectos visíveis e
invisíveis. Os invisíveis se referem às crenças, aos valores, às ideologias e
os visíveis incluem manifestações verbais e conceituais, como os currículos;
manifestações visuais e simbólicas, como os uniformes; e manifestações
comportamentais, como os rituais e as cerimônias. As escolas militares alteram
e exacerbam todos esses itens; por exemplo, a exigência do uso das fardas,
consideradas como fundamental nas normas dos colégios militares, e seu uso
impõe regras que devem ser seguidas dentro e fora da escola. Há muitas
proibições aos estudantes de fazer algo quando estão com o uniforme, mesmo que
seja fora da escola, que vão desde “dobrar short ou camiseta de Educação
Física, para diminuir seu tamanho, desfigurando sua originalidade”, considerada
transgressão disciplinar leve, até “provocar ou tomar parte, uniformizado ou
estando no Colégio, em manifestações de natureza política”, classificada como
grave. (CEPMGO, 2017). Pinheiro e Guimarães (2018), além de dizerem que os
diretores das escolas militares estão a serviço do governo do estado, reafirmam
que eles não são mais gestores democráticos devido à implantação na escola da
mesma disciplina hierárquica dos quartéis. É exigida uma obediência
incondicional que atinge todos os membros da comunidade escolar, mas
especialmente os alunos. Exemplifica o foco na obediência, a lista de 85
transgressões disciplinares, classificadas como leve, média e grave,
apresentadas no Regimento Interno dos colégios, no título IX “Das transgressões
disciplinares” (CEPMGO, 2017). As regras do Regimento indicam esse controle
estabelecido na escola militarizada, bem como de uma concepção de educação
limitada ao controle do corpo e do comportamento, conforme pode-se constatar na
lista abaixo: 5. Transitar ou fazer uso de vias de acesso não permitidas ao
corpo discente; […] 6. Fazer ou provocar barulho excessivo em qualquer
dependência do colégio; […] 14. Mascar chiclete ou similares nas dependências
do CPMGO ou quando uniformizado; […] 22. Apresentar-se com o cabelo fora do
padrão, deixando-os soltos com pontas ou mechas caídas (alunas), ou tingido de
forma extravagante; […] 23. Sentar-se no chão estando uniformizado (CEPMGO,
2017).
Na
análise de Belle (2011), esse modelo de escola militarizada se sustenta em
princípios burocráticos e, mesmo autoproclamando-se uma escola democrática,
fere-os quando não realiza eleições para escolha de diretores. O caráter
emancipatório da educação não ocorre, uma vez que o ensino é reorientado para a
lógica militar, na qual o castigo e a punição são respostas à desobediência e,
portanto, têm sentido diametralmente oposto à emancipação via educação (VELLOSO;
OLIVEIRA, 2015). Se retomarmos a reflexão sobre a disciplina nas escolas
militares, constataremos que ela ocorre devido à forte hierarquia advinda da
vida militar, que valoriza a subordinação ao chefe, a seu poder de dirigir e
punir. Na vida da caserna, a obediência deve ser sem questionamentos. Esse tipo
de obediência pode ser compreensível na vida militar, na qual o subordinado
deve seguir ocomandante sem questionar, devido aos riscos que podem advir numa
situação de guerra ou conflito. O mesmo, porém, não se aplica aos civis, que
não viverão esse tipo de situação, uma vez que a escolha profissional desses
alunos não é necessariamente a militar. Além disso, quanto mais esse modelo se
expande e ocupa espaços nas redes públicas, mais tal formação atingirá um
número maior de cidadãos civis, que, certamente, ocuparão diferentes espaços na
sociedade. Em consonância com esse debate, Lima (2015) identifica em seu estudo
que o objetivo das escolas militares é o de formar cidadãos disciplinados. A
filosofia de ensino tem seu foco na disciplina. O estudo de Lima (2018)
demonstra que o colégio militar se propõe uma formação com foco na disciplina,
no respeito, na pontualidade, na busca de sucesso pessoal e profissional. Mesmo
incluindo as mulheres como estudantes, Carra (2014) observa que o ethos
masculino se mantém; a escola não é coeducativa. Na conclusão da sua
dissertação, Lima (2018.) constata que a escola militar busca formar pessoas
obedientes em relação a ordem instituída, subservientes a uma sociedade
autoritária. Formar cidadãos passivos e alienados que contribuam com o processo
de naturalização das diferenças sociais. Diferentes modelos de educação formal
consolidam diferentes valores na vida adulta, e no caso das escolas
militarizadas, o modelo ressalta um projeto de educação que consolida uma
perspectiva de formação de um cidadão adequado à lógica do capital, do
empreendedorismo, defensor da lógica meritocrática e alinhado a uma sociedade
conservadora. No que diz respeito à disciplina, importa contrapor a essa visão
uma outra concepção, que considera as especificidades da escola e,
principalmente, do trabalho pedagógico. Nessa perspectiva, a disciplina tem
outra acepção, uma vez que ela não é a disciplina militar, que preconiza a
dominação do corpo imposta por regras externas, mas uma consequência do
envolvimento/ comprometimento do próprio aluno em atividades intelectuais
propostas pelo professor por compreender que o discente tem a capacidade de
manter atenção ao objeto de estudo. A educação escolar, compreendida como
trabalho coletivo sob a direção de um professor, requer como afirma Vasconcelos
(1994), uma disciplina consciente e interativa, que deve ser analisada como
meio e não como fim em si mesma. Isso quer dizer que não se faz trabalho
pedagógico significativo sem disciplina, mas que não é a disciplina o fim
último do processo educativo. Outro aspecto que mereceu atenção nessa pesquisa
foi o papel das disciplinas escolares sendo conformadas para atender a
objetivos militares. Como campo científico, as disciplinas se referem à seleção
de conhecimento de cada campo científico, de forma a atualizar as novas
gerações. Mesmo não tendo sido objeto central de nosso estudo, importa
ressaltar que a presença dos militares na educação brasileira se evidencia com
a Proclamação da República pelo Marechal Deodoro da Fonseca, no final do século
XIX. Esse fato mostra a forte presença militar na vida social do país e na
educação, por meio de introdução no currículo escolar, ao longo do século XX,
de disciplinas como Ginástica, Educação Física, Escola de Tiro, Educação Moral
e Cívica, Organização Social e Política Brasileira, Estudos de Problemas
Brasileiros. Para as crianças menores, estimulava-se o escotismo, as fanfarras
e o batalhão infantil. Nessa direção, o estudo de Pinto (2015) analisou as
manifestações da cultura militar na educação brasileira e descobriu que a baixa
escolarização Porto das tropas e o despreparo para atirar, levou o Exército
Brasileiro a criar a instrução militar que, por sua vez, chegou às escolas
civis com a introdução, nos currículos, da disciplina Educação Física, pela
pedagogia do escotismo e, também, pelos códigos comportamentais, identificados
no estudo de Oliveira (2017): pelas marchas militares, pela exaltação dos
símbolos nacionais e pelo uniforme, similar ao das corporações militares. No
início do século XX, de acordo com Souza (2000), práticas de natureza
cívico-militar levaram à introdução da disciplina Ginástica e exercícios
militares, dos Batalhões Infantis, do escotismo e, depois, da disciplina
Educação Física. Durante a ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985, a
disciplina Sociologia se esvazia de conteúdo crítico e a formação da cidadania
passa para o controle estatal (PERUCCHI, 2012), com os conteúdos ministrados
nas disciplinas de Organização Social e Política do Brasil (OSPB) para o ensino
de segundo grau, Educação Moral e Cívica no ensino de primeiro grau, como era
denominado o ensino fundamental à época, e Estudos de Problemas Brasileiros
(EPB) para o ensino superior. Vale destacar que os próprios militares suspenderam
a presença dessas disciplinas nos currículos pelo poder dos professores, que
são intelectuais, em usar os espaços dessas aulas para fazer um contra discurso
à ditadura.
O
bom desempenho dos estudantes de colégios militares, insistentemente apontado
como importante diferencial positivo desse modelo, argumento largamente
utilizado como justificativa para a expansão dessas escolas, também foi objeto
de reflexão nos trabalhos acadêmicos produzidos. No entanto, o trabalho de
Benevides (2016) observa que essa informação é sobrevalorizada, uma vez que os
alunos mencionados já eram bons alunos anteriormente e as escolas avaliadas possuíam
boa estrutura física, o que não acontece nas escolas públicas regulares. Para
ela, se houvesse controle da performance anterior dos alunos haveria uma queda
de 50% do diferencial de notas. Segundo a mesma autora, as escolas militares já
impõem uma seleção pela classe social, pois os alunos devem pagar mensalidade,
comprar fardas, que são bem mais caras que os usuais uniformes dos estudantes
de escola pública regular. Ferreira (2018) também corrobora esse argumento ao
concluir que as famílias de baixa renda são excluídas desse tipo de escola
devido aos custos de manter um filho nelas. Ainda em relação ao desempenho dos
estudantes de colégios militares, Santos (2011) ressalta que os indicadores
educacionais devem ser analisados levando-se em conta a origem dos alunos e as
desigualdades iniciais de rendimento, uma vez que as desigualdades sociais e
culturais não podem ser determinantes do êxito ou fracasso dos estudantes. Essa
interface entre desempenho dos estudantes e público atendido pelos colégios
militarizados ainda representa um campo fértil a ser explorado, que possa
englobar estudos quantitativos e qualitativos, e estudos longitudinais que
acompanhem as trajetórias estudantis. O que temos produzido sinaliza que a
melhora do desempenho está relacionada ao processo seletivo realizado por essas
escolas que atendem crianças, adolescentes e jovens que pertencem a camadas
sociais distintas das atendidas pela escola pública regular. Ademais, as escolas
militarizadas contam com infraestrutura e insumos diferenciados, que não são
oferecidos aos alunos das escolas públicas. Esse é um outro elemento a ser considerado
nessa complexa relação. Outro elemento que se destaca é a identidade ambígua
das escolas militares, que possuem vínculos com dois sistemas estaduais, a
educação e a segurança pública, permitindo que a escola atue com privilégios e
ordenamento operacional próprios. A análise de Ferreira (2018) indica como essa
ambiguidade facilita a gestão da escola militarizada, com benefícios que
dificilmente chegam às escolas públicas. Assim, desde a origem, o colégio
militarizado representou uma mescla entre os interesses públicos e privados,
entre os interesses das secretarias de educação e de segurança pública, que
atuam sobre a escola pública.
O
uso da violência como recurso narrativo para justificar a militarização das
escolas é explorado por Pinheiro e Guimarães (2018), que afirmam serem o neoliberalismo
e a escola militar apresentados como solução ideal para resolver conflitos e
contradições do sistema, como o aumento da repressão frente ao envolvimento dos
jovens com a violência. Silva (2008), a partir de um estudo no colégio da
polícia militar de São Paulo, afirma que violência juvenil na escola pode ser
compreendida como uma forma de resistência às normas, formalismos e imposições
que dominam o cotidiano escolar. A questão da necessidade da militarização como
decorrência da violência tem sido bastante explorada pela mídia, mas carece de
maiores pesquisas e estudos que possam problematizar essa relação tão imediata
de causa e efeito. Apesar de Goiás estar no topo do processo de militarização
das escolas públicas, possuindo, em abril de 2019, 54 escolas sob a responsabilidade
da Polícia Militar (PM), com 61 mil alunos, e a maioria das pesquisas
encontradas abordarem o processo goiano, lamentavelmente, o estado ainda figura
nas páginas policiais como um estado com altos índices de violência, amargando
dois assassinatos de coordenadores de escolas estaduais no curto espaço de
quatro meses (abril e agosto de 2019). Portanto, o aumento crescente da
violência e da militarização de escolas públicas ainda é um fenômeno que carece
de pesquisas e estudos que investiguem mais pormenorizadamente essa relação. Se
considerarmos o estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), que analisou, em 2017, 310 municípios brasileiros com mais de 100 mil
habitantes, Goiás, apesar de ser o estado com maior número de escolas
militarizadas no país, está entre os estados mais violentos na região Centro-Oeste.
Nessa região, o estado com a maior taxa de mortes violentas é Goiás (43,9),
seguido por Mato Grosso (34,3), Mato Grosso do Sul (25,7) e Distrito Federal
(20,5). Se acompanharmos a escalada da violência em Goiás nas últimas décadas, justamente
quando a militarização se expandiu, os dados indicam que de 2006 a 2016, a taxa
de homicídios quase dobrou, de 26,3 homicídios a cada 100 mil habitantes em
2006, para 45,3 em 2016 (IPEA, 2019, p.32 ). De acordo com esse estudo Em
Goiás, em 2017, observa-se uma concentração maior de mortes violentas intencionais
no entorno de Brasília e na região metropolitana de Goiânia, nos municípios de
Goiânia (40,7), Aparecida de Goiânia (60,4), Senador Canedo (48,4) e Trindade
(57,7). Todavia, inúmeros municípios muitos pequenos, com populações muitas
vezes menores do que 10 mil habitantes, possuíam alta prevalência relativa de
homicídios em todas as mesorregiões goianas, como são o caso de Colinas do Sul
(141,7) e Trombas (112,0), no Norte.
Esse
fenômeno não pode ser simplificado nem reduzido à questão educacional. A
constatação do aumento da violência indica que a secretaria de segurança
pública, principal responsável pela política pública, não tem alcançado resultados
efetivos, gerando uma tragédia para o estado, que Traz implicações na saúde, na
dinâmica demográfica e, por conseguinte, no processo de desenvolvimento
econômico e social. Um dado emblemático que caracteriza bem a questão é a
participação do homicídio como causa de mortalidade da juventude masculina (15
a 29 anos), que, em 2016, correspondeu a 50,3% do total de óbitos. Se
considerarmos apenas os homens entre 15 e 19 anos, esse indicador atinge a
incrível marca dos 56,5%. (IPEA, 2019,p. 32) grifos nossos) Essa última
constatação é estarrecedora, pois o homicídio entre os jovens entre 15 e 19
anos, que deveriam estar na escola cursando o ensino médio, alcança uma taxa de
56,5% dos óbitos nessa faixa etária. Esse dado indica que o estado precisa
urgentemente, mais do que militarizar a escola pública, de uma política de segurança
para diminuir a violência e o extermínio dos jovens.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Importa
destacar que, assim como o fenômeno da militarização é recente e avassalador
nas consequências para as redes públicas de ensino, a produção do conhecimento
sobre esse modelo de escola tem ganhado destaque e cresce nas universidades
brasileiras, na produção de teses e dissertações. No entanto, sua divulgação
nos periódicos ainda é muito incipiente, tendo obtido pouco espaço nas
publicações brasileiras no conjunto das temáticas em educação. Considerando as
dificuldades e o modelo que inspira essa produção acadêmica, podemos sinalizar
que ainda precisamos de maior articulação entre os pesquisadores da área, das
perspectivas pesquisadas e a divulgação do conhecimento produzido. Há muito
material jornalístico sobre o tema, mas foi nossa decisão não incluí-los nessa
pesquisa bibliográfica, o que indica a necessidade de novos estudos que os considerem
como fonte. Nossa pesquisa sinaliza, também que alguns temas têm ganhado
destaque: a gestão escolar, a disciplina escolar, as disciplinas escolares
instrumentalizadas em favor de um modelo de escola militarizada, o perfil dos
alunos e o desempenho escolar, a violência. Importa destacar que, em todos os
estudos realizados encontram-se críticas a esse modelo de se fazer educação,
uma vez que se parte do princípio que a educação visa à emancipação, e não à
burocratização e à rigidez disciplinar.
Destacamos
também o caráter seletivo dessas escolas militarizadas, pois os estudantes
pobres não podem frequentá-las, uma vez que não têm recursos para custeá-las.
Desse modo, este modelo acaba privilegiando as camadas de classe médias que,
perdendo poder aquisitivo, mantêm seus filhos numa escola que se assemelha à
‘particular’, mas com mensalidade menor, o que evidencia mais uma vez o caráter
híbrido dessas escolas. Muito há a se pesquisar sobre esse tipo de educação e
as ideias para isso vão desde conhecer como estudantes e professores analisam a
experiência vivenciada nesse modelo, até como tem sido o desempenho dos seus
egressos na vida universitária, que requer habilidades pouco exploradas e
ensinadas nas escolas militares, como a autonomia de pensamento, a criatividade
e o respeito humano, independentes da “patente” militar. Questões que nos
instigam a novos estudos e pesquisas.
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MIRIAM
FÁBIA ALVES é Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. É
professora associada na Faculdade de Educação e docente no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Goiás. E-mail: miriamfabia@gmail.com.
MIRZA
SEABRA TOSCHI é Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba.
Pós doutora em Educação pela Universidade de Brasília. Docente de ensino
superior e na pós stricto sensu da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: mirza.seabra@gmail.com.
Recebido
em setembro de 2019
Aprovado
em setembro de 2019
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