Porque ainda acredito na importância da biblioteca e na posse da palavra
Considerações sobre os parâmetros descritos no
projeto de lei 9484/18 para assegurar que a biblioteca cumpra sua função
social: formar leitor@s
Ler a coluna da
jornalista Eliane Brum não é para @s frac@s, como se diz por aí. Se você
ainda não leu, reforço o convite. É um exercício fundamental de reorganização
das ideias e das certezas, em especial a falsa ideia e certeza acerca da
humanidade que habita em nós, entendendo por humanidade a capacidade de sentir
e promover empatia, alteridade, acolher, coexistir, respeitar, cuidar, amar
todas as vidas. O estilo de seus textos, conhecido como jornalismo literário,
promove uma experiência de empatia incomum ou impossível no jornalismo
tradicional.
Diferente dos livros de literatura, o horror está
no fato de que não se trata de ficção, de passado ou futuro remotos, é no aqui
e no agora, no chão que a gente não pisa, porque geralmente está bem distante
das nossas calçadas, das nossas vistas e, ainda que próximos dos nossos olhos
que correm apressados dados de reportagens sobre miséria, chacina e morte, não
nos sensibiliza, não nos mobiliza para um #JeSuis/#EuSou/#MeToo. É de se
perguntar o porquê e temer a resposta.
Assim me pegou semana passada este artigo sobre as crianças de Altamira, onde a jornalista mostra com todas as tintas o
horror anunciado nas trilhas construídas há muitos anos até chegarmos aqui,
mostrando, de novo, que Nelson Rodrigues sempre esteve certo:
subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos. E daí eu me pergunto se
o que penso, o que faço, o que sou, a causa pela qual advogo há tanto tempo,
que importância tem diante de Altamira, nome de cidade que aprendi há uns 10
anos num momento lindo que foi conhecer um jovem que havia sido um dos
ganhadores de um concurso de redação em nível nacional que realizava na
organização na qual trabalhava àquela época.
Ironicamente Altamira, palavra de origem teutônica
(alemã) significa “brilhante”. Tudo o que brilha em Altamira é desconsolo.
Brilha e grita. Mas ninguém está vendo ou ouvindo. E se vê e ouve, nada faz.
Então, neste momento, como em tantos outros e em tantos lugares nesta estrada
onde estou há mais de vinte anos, reafirmo minha convicção sobre a importância
vital de garantir que todos os recursos existam e estejam à disposição de toda
a população para assegurar a posse da palavra, para anunciar e denunciar, para
narrar e resistir, para mudar os rumos da história onde a vida e os sonhos de
muitos são soterrados em nome da ganância desenfreada, e da garantia do direito
à literatura, como diz Antônio Cândido sobre a literatura, “pelo fato de dar forma aos
sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto
nos humaniza”.
É com esta convicção em punho que escrevo sobre a
aprovação do projeto de Lei 9484/18, também anunciada semana passada na Câmara de
Comissão Justiça e Cidadania. O PL é de autoria da deputada Carmen Zanotto
(Cidadania-SC) e da ex-deputada Laura Carneiro, e visa complementar a Lei
12.244/10, que determina a universalização de bibliotecas nas escolas públicas
e privadas do País. Trata-se, sem dúvida, de um novo marco legal de extrema
importância para a efetividade do direito e trata de parâmetros, que são
fundamentais para que a biblioteca não seja entendida apenas como um
depositório de livros, assim como é vital a criação de Sistema Nacional de
Bibliotecas em Escolas, viabilizando obter cenário e partilha, como ocorre no
exitoso programa de bibliotecas escolares de Portugal.
Já sabemos que o impacto que uma biblioteca pode
promover está diretamente relacionado à qualidade de seus insumos,
profissionais, ações de promoção de leitura e da bibliodiversidade presente em
seu acervo – falei sobre em recente artigo publicado na Biblioo.
Portanto, é fundamental que nas Bibliotecas atuem profissionais que sejam
leitoras(es) de fato, que apoiem a jornada leitora de suas(seus)
frequentadoras(es), que ponham leitoras(es) em contato com outras(os)
leitoras(es), que ofereçam leitura de obras que transcendem o lugar e o senso
comum.
Bibliotecas onde circulam leituras que nos
instiguem a indagar a vida, que ampliam nossos horizontes de pensamento para
muito além das superficialidades que trafegam pelas mídias, sempre tão
carregadas de ódio movido a preconceitos. Bibliotecas empenhadas em ativar pela
leitura a razão intelectual e a razão sensível, condição sine qua non
para pensarmos e atuarmos em favor da vida digna e de qualidade para tod@s; que
nos alimentem de referências e encantamento para promover o mínimo de dano e o
máximo de bem. Porque o melhor lugar do mundo é aqui e agora, no chão que a
gente pisa, daqui até Altamira e além.
Como diz o Prof. Luiz Percival Leme de Britto[1], “se o que se busca é promover a leitura como valor, é imperativo
encontrar estratégias mais densas e mais fundamentadas de estimular a leitura,
reconhecendo que ler, em muitas situações, é difícil e que a satisfação que daí
se pode retirar é de natureza muito distinta da que oferece o entretenimento
cotidiano”.
Considerações feitas, partilho minhas reflexões
sobre a importância de existirem alguns destaques do PL 9484/18:
1.
Artigo 2º., como objetivo principal, como função
social da biblioteca da escola: “promover as habilidades, competências e
atitudes que contribuam para a garantia dos direitos e objetivos de
aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) NO CAMPO da leitura e
da escrita” – na versão atual está “em especial no campo da leitura
e da escrita”, sendo que está como item II e não item I. Esta alteração
de disposição na redação do artigo tem a ver com o fato de que estamos diante
de um desafio civilizatório que merece a máxima focalização, além de que
tecnologias são suportes, são meios, os quais só podem ser acessados de forma
exitosa se, antes, as habilidades de leitura e comportamento leitor estiverem
consolidados. Tal premissa é atualmente ainda mais significativa, pois é pré-requisito
para que crianças e jovens em formação – mas também adultos – não se percam nas
fake news, que promovem o preconceito e obstaculizam a aprendizagem e
disposição ao diálogo democrático;
2.
Artigo 2º. item IV: A
Biblioteca da escola deve ser lugar de encontros e de estudo, mas é fundamental
não confundir este espaço com o de entretenimento ou lazer, assim como
não se aplica ao laboratório de ciências ou de informática ou à própria sala de
aula, que são locais de aprendizagem. É muito comum em nossa sociedade buscar
alternativas para a biblioteca que não a leitura porque acredita-se que, com
outras atividades, a biblioteca poderá formar leitoras(es). Ocorre que se assim
fosse, se outras estratégias que não a leitura formasse leitoras(es), não
teríamos os índices negativos que temos. Para expressar um pensamento sobre a
biblioteca da escola conectada com os desafios da formação de leitoras(es) e
também das oportunidades para sua formação recorro novamente ao professor Luiz
Percival: “Se não se quer que a biblioteca (e a escola) seja o lugar de
submissão ao autoritarismo, tampouco se deseja que ela seja o lugar da mesmice
cotidiana, da repetição do óbvio. Para desmontar a armadilha, é preciso
propugnar para que as atividades escolares – nas salas de aula e na biblioteca
– se organizem com base em questões que provoquem a crítica à realidade e uma
relação criativa com o conhecimento, buscando o diálogo entre o saber
sensível-prático (aquilo que as pessoas trazem de sua experiência imediata) e o
patrimônio científico produzido pela humanidade. Esse caminho se trilha com
atividades de estudo e de experimentação estética, com projetos sistemáticos de
leitura de textos, grupos de pesquisa, clubes de leitores, sessões de leitura
pública, espaços de estudo individual, com roteiros e bibliografias sugeridos
pelos professores”;
3.
Artigo 2º. item V: É
extremamente importante que a biblioteca da escola atenda a comunidade do
seu entorno, seja porque inexistem bibliotecas públicas em quantidade
suficiente seja porque em muitas localidades no Brasil, mesmo nas metrópoles, a
escola é o único local de acesso à cultura e à educação, seja porque a formação
de leitoras(es) passa, e muito, pelo apoio e pela participação da família.
Neste sentido, a proposição para um novo item neste PL é: Ser espaço
de estudo e acesso gratuito aos livros e às leituras, destinado a servir de
oportunidade para que a comunidade do entorno, em especial as famílias das(dos)
estudantes matriculadas(os) na escola, possa também ter a oportunidade de
formar-se leitora e participar ativamente da formação leitora de crianças e
jovens, em parceria com a escola;
4.
Inciso 1º, item II :
Igualmente importante destacar com relação à criação do Sistema Nacional de
Bibliotecas Escolares (SNBE), de que trata o inciso 1º., como funções
básica, item II: “Promover a qualificação e melhoria do
funcionamento da atual rede de bibliotecas escolares para que atuem como
centros de formação leitora, centros de ação e educacional permanentes”.
Esta é uma premissa fundamental visto que é observado que em muitas bibliotecas
escolares ocorrem diversas atividades lúdicas, de entretenimento e mesmo de
realização de eventos escolares que não têm a ver com formação leitora.
Acredito que marcar esta posição é fundamental para desconstruir, ao invés de
reafirmar, a compreensão equivocada e de senso comum sobre ações promotoras de
leitura, o que faz com o que a biblioteca seja espaço que abriga teatro,
cinema, exposições, oficinas de artesanato etc, que não resultam em formação
leitora;
5.
Inciso 1º., itens III e IV, destaco
a importância da bibliodiversidade. Novamente recorro ao Prof. Luiz Percival
para falar do acervo da biblioteca da escola: “O acervo da biblioteca escolar, considerando sempre o nível de autonomia e de
desenvoltura intelectual dos usuários, precisa incluir obras de ciência,
história, geografia, psicologia, literatura, artes e organizar-se de forma a
permitir percursos formativos amplos e densos. Sua funcionalidade depende, em
grande medida, de como a comunidade da escola abraça um projeto de formação que
toma a interdisciplinaridade como eixo e avança para além do espaço-aula”. É
preciso muita acuidade para pensar o acervo das bibliotecas das escolas –
aliás, de todas as bibliotecas -, justamente porque concordamos com a máxima do
professor Antonio Candido sobre a potencialidade de humanização da literatura,
neste País é vital focalizar na presença de literatura de autoras(es) negras(os) e indígenas, ouvir,
ler, incorporar, encarar e cuidar para que, de fato, o racismo seja banido de
mentes, corações, ações, do chão que a gente pisa até Altamira e além;
6.
Inciso 1º., item V, importante que haja destaque
para caracterização da formação/treinamento/qualificação de recursos humanos
para o funcionamento adequado das bibliotecas escolares. Daí sugestão da
seguinte redação: “desenvolver atividade de treinamento e qualificação de
recursos humanos nas bibliotecas tendo como premissa que também sejam
leitoras(es), para que apoiem a jornada leitora dos(as) estudantes, que
ofereçam leitura de obras que transcendem o lugar e o senso comum, que façam
circular leituras que instiguem a indagar a vida, leituras que promovam a razão
intelectual e a razão sensível, para dar conta das tarefas escolares de sua
vida acadêmica e de seu projeto de vida”;
7.
Inciso 1º. item VIII: na mesma linha que sobre a
importância de destacar o compromisso da biblioteca da escola como formadora de
leitoras(es), a sugestão de acréscimo na redação: “favorecer a ação dos
sistemas estaduais e municipais…….atuem como promotores de leitura, em favor
do pleno desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita dos(a)
estudantes, apoiando também a formação leitora da comunidade do entorno,
promovendo a integração da biblioteca como projeto político pedagógico das
escolas;
8.
Inciso 1º., item X, inclusão da citação aos parâmetros
de biblioteca preconizados pelo CAQ no PNE, observando a importância de que no espaço da
biblioteca seja considerada a possibilidade de abrigar a presença de estudantes
de uma sala de aula ao mesmo tempo, para que assim professores(as) possam
propor ações de pesquisa e leitura compartilhada, fomentando reflexão e debate
e a apropriação de referências sobre uso social deste espaço.
A acuidade é precisa e preciosa para que possamos
empreender políticas e ações de formação leitora e escritora que, de fato,
contribuam positivamente para a solução de déficits numéricos por trás dos
quais há muita gente, geração após geração, que está alijada da possibilidade
de exercer sua cidadania, de ser sujeito no mundo, de pensar e atuar para
construir esta jornada, ainda longa demais, que nos levará a reconhecer nossa
humanidade comum e promover o devido cuidado com todas as vidas. Sem a posse da
palavra não há liberdade possível, aqui ou em Altamira e além.
[1] Doutor
em Linguística e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, Luiz
Percival Leme Britto atua na área de Educação e Linguagem como pesquisador,
professor e formador de professores; coordena o Lelit – Grupo de pesquisa e
intervenção em leitura, escrita e escola – e o Pacto Nacional pela
alfabetização na idade certa – PNAIC / Oeste do Pará.
Autor
Socióloga, concebeu e coordena a Campanha "Eu
Quero Minha Biblioteca" desde 2012, quando atuava como diretora de
educação do Instituto Ecofuturo, do qual foi co-idealizadora e onde esteve por
15 anos como diretora de educação; membro do Conselho Consultivo da Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Edição 68
Ano 8, nº 02
Junho 2018
ISSN 2238–3336
Colunistas
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