Comunismo ou lei da selva
Filósofo Zizek aponta um
novo tipo de comunismo após a pandemia e o colapso do populismo de direita
12 de abril de 2020, 06:59
“Comunismo ou lei da selva”,
proclama o filósofo Slavoj Zizek.
Publicado originalmente pelo
Unisinos: O filósofo esloveno não acredita que a emergência traga novos
totalitarismos. Aliás, os laços da comunidade serão fortalecidos. Porém, apenas
se formos capazes de reconstruir a confiança nas instituições: “o que acontece
mostra que cabe a nós, aos cidadãos, sujeitar a maior controle aqueles que
governam, certamente não o contrário”.
“Um novo senso de
comunidade: é isso que está emergindo dessa crise. Uma espécie de novo
pensamento comunista, distante do comunismo histórico. A banal descoberta de
que coordenação e cooperação globais são necessárias para combater o vírus tem
um viés revolucionário. Estamos redescobrindo o quanto precisamos uns dos outros.
No entanto, a Organização Mundial da Saúde sempre o repetiu: e, em vez disso,
não existia nada similar nem mesmo dentro da União Europeia”.
Pelo telefone de sua casa em
Liubliana, o filósofo e sociólogo esloveno de 71 anos Slavoj Žižek, autor de
ensaios famosos como Em defesa das causas perdidas e L’incontinenza del vuoto,
tem repetidos acessos de tosse: “Tenho todos os sintomas da Covid-19, mas não
sou positivo. Sinto-me mal há anos.” Talvez também por esse motivo ele tenha
decidido se questionar como a pandemia está mudando nossas vidas, com uma série
de ensaios reunidos na Itália, pela Ponte alle Grazie, em um ebook intitulado,
precisamente, Virus. Uma coleção constantemente atualizada com novos
acréscimos, para download.
A entrevista é de Anna
Lombardi, publicada por La Repubblica, 06-04-2020. A tradução é de Luisa
Rabolini.
Eis a entrevista.
Você escreve: “Receio dormir
porque os pesadelos me assaltam sobre a realidade que nos espera”. Todos nós
sentimos esse medo: o que você prevê?
A realidade já mudou. Vemos
governos conservadores adotando medidas que chamaríamos de socialistas em
outros tempos: Donald Trump ordena às indústrias privadas o que produzir. Boris
Johnson nacionaliza temporariamente as ferrovias. Todos vivemos de uma maneira
que seria impensável há poucos meses. Há aqueles que pensam em um mundo em que
se aproveitará do vírus para controlar todos nós, e, é claro, é uma possibilidade.
Mas não acredito em novos totalitarismos: são precisamente os governos que
estão em pânico hoje, incapazes de controlar a situação, e muito menos
construir uma sociedade no estilo Big Brother.
No máximo, há mais
desconfiança em relação às instituições. Mesmo na China, testemunhamos
protestos, ainda que modestos. Bem, deveríamos encontrar uma maneira de
reconstruir essa confiança. Talvez com novos Assange capazes de desmascarar os
abusos. Certamente, o vírus mostra que cabe a nós, aos cidadãos, sujeitar a
maior controle aqueles que governam, certamente não o contrário.
Você está dizendo que as
pessoas deveriam se envolver mais com a política?
Alguém disse que, no meio
dessa crise, deveríamos nos preocupar apenas com a nossa salvação. Penso o contrário:
não há momento mais político do que o atual. Apesar das advertências dos
cientistas, os governos se descobriram despreparados. Mas agora somos forçados
para enfrentar o pior, é claro: não há mais espaço para o “America First” e
slogans do tipo. Para sobreviver, os Estados a partir de agora terão que lidar
continuamente com o futuro. Precisamos de um novo sistema de saúde pública
global e agências internacionais aptas a agir com ações acordadas.
Precisamos de salários
mínimos garantidos, pagos agora inclusive por Trump. Minha ideia de comunismo
não é o sonho de um intelectual: estamos descobrindo na nossa própria pele por
que certas medidas devem ser tomadas no interesse geral. Não subestimemos o
impulso que o vírus está dando a novos sistemas de solidariedade em nível local
e global. Construir um novo modo de viver será o nosso teste. Mas as pessoas
precisam retomar as coisas em suas mãos agora: não esperar o fim da crise.
E como fazer isso? Estamos
todos trancados em casa.
Nem todo mundo que está em
casa passa seu tempo apenas assistindo filmes estúpidos. Todos estão se fazendo
perguntas básicas sobre nossa vida cotidiana, questões que em outros momentos
definiríamos de metafísicas. Muitos estão usando esse tempo para refletir. E
para escolher. É verdade, somos mais isolados, mas também mais dependentes uns
dos outros. Vivemos um imperativo paradoxal: demonstramos solidariedade por não
nos aproximarmos. Nunca fui um otimista, mas esse respeito pressupõe uma
mudança profunda de comportamento que sobreviverá à crise.
Vamos realmente aprender
alguma coisa com tudo isso?
O custo psicológico é
tremendo. E, é claro, o isolamento também cria novas formas de paranoia:
demonstram isso as inúmeras teorias da conspiração na rede, e países como
Estados Unidos e China jogando um para o outro a origem do vírus. Mas, repito,
estaremos mais conscientes do que significa estar perto dos outros, para o
melhor ou para o pior. Reencontrar-se, por exemplo, será uma alegria. Mas
teremos mais cuidado. Depois, esta situação tornou bem visíveis as diferenças
sociais. Penso no egoísmo dos super ricos fechados em seus bunkers ou em iates.
Madonna postou um vídeo na banheira dizendo que estamos todos no mesmo barco.
Não é assim e as pessoas veem a situação. Os novos heróis são as pessoas
comuns.
Para impedir a propagação do
vírus, as fronteiras foram fechadas. Em certo sentido, estamos diante de uma
nova forma de nacionalismo. Você não teme uma regurgitação de populismo?
Se algo está sucumbido, é
justamente a mensagem populista. Pessoas como Donald Trump e Jair Bolsonaro
mostraram sua mesquinharia, dando a ideia de estar pronto para sacrificar os
mais fracos. E na Europa não funcionou jogar a culpa nos chineses ou refugiados:
quem transportou o vírus foram turistas e empresários. Até a corrida
armamentista dos EUA é ingênua.
Eles pensam em proteger a
casa e ficam doentes porque não lavam as mãos o suficiente. Estamos todos
aprendendo que esforços nacionais isolados não são suficientes: os limites do
populismo nacionalista que insiste na soberania do Estado estão diante dos
olhos de todos. Repito, a solidariedade global e a cooperação são o único
caminho racional e até egoísta a seguir. No entanto, teremos de enfrentar o futuro
da União Europeia: foi ridiculamente passiva. Poderia ter determinado ações e
distribuído ajuda. Não o fez. Falhou.
Ainda não estamos fora da
emergência. Como podemos resistir até então?
Vivemos uma experiência
excepcional, pode tirar o nosso melhor ou o pior. Não nos tornaremos todos
monges budistas ou santos católicos. Para enfrentar com a solidão, talvez o
melhor seja continuar estabelecendo rotinas básicas. Uma repetitividade que nos
impede de ceder ao caos. Temos que manter uma ordem para estar prontos amanhã.
Do que você mais sente
falta, estando fechado em casa?
De ir às livrarias. Os
últimos lugares onde você ainda tem possibilidades de escolha cultural. Não
suporto os algoritmos da Amazon, da Netflix: eles oferecem o que pensam que
você gosta, sem dar a oportunidade de descobrir coisas novas e, portanto,
surpreender-te. Na livraria, você vai para procurar algo e muitas vezes volta
com outra coisa. As livrarias são insubstituíveis e é muito grave que a crise
as esteja colocando em risco.
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