A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS - Colégio da polícia militar Alfredo Vianna: características de uma cultura escolar-militar – SINPRO-DF
- Jornalista: Luis Ricardo - 27 de fevereiro de 2020
Dando prosseguimento à série de artigos sobre o
processo de militarização, Amilton Gonçalves dos Santos e Josenilton Nunes
Vieira abordam Colégio da polícia militar Alfredo Vianna: características de
uma cultura escolar-militar. O artigo aborda as características da Cultura
Escolar de um Colégio da Polícia Militar da Bahia, considerando a integração de
elementos da
Cultura Militar na realidade escolar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que se debruçou, através de estudo de caso, sobre o contexto educacional da instituição por meio de análise documental, observações e entrevistas com gestores, docentes e alunos. Os resultados explicitaram um aparato militar objetivando a transmissão e ensino da Cultura Militar, num processo de padronização dos indivíduos por meio de uma educação do corpo e do comportamento.
Cultura Militar na realidade escolar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que se debruçou, através de estudo de caso, sobre o contexto educacional da instituição por meio de análise documental, observações e entrevistas com gestores, docentes e alunos. Os resultados explicitaram um aparato militar objetivando a transmissão e ensino da Cultura Militar, num processo de padronização dos indivíduos por meio de uma educação do corpo e do comportamento.
Este artigo, o nono da série, é uma sequência dos
trabalhos e estudos sobre o processo de militarização na educação pública
brasileira e todos os transtornos que eles causam.
Esta série de trabalhos é produzido pela Revista
Brasileira de Política e Administração da Educação, periódico científico
editado pela Associação Nacional de Política e Administração da Educação
(ANPAE), e tem o objetivo de difundir estudos e experiências educacionais,
promovendo o debate e a reflexão em torno de questões teóricas e práticas no
campo da educação.
O sindicato recomenda a leitura deste material para
todos(as) os(as) professores(as) que tiverem interesse em aproveitar os
trabalhos para pesquisas.
Confira abaixo o trabalho na íntegra:
Introdução
O presente artigo aborda as relações que se estabelecem,
a partir da inserção de um rol de elementos próprios da Cultura Militar na
realidade de uma instituição de ensino; descreve os aspectos característicos da
Cultura Escolar em um colégio da Polícia Militar da Bahia e analisa a prática
pedagógica decorrente desse encontro de culturas institucionais e suas
possíveis implicações na formação dos estudantes matriculados no referido
estabelecimento educacional. Trata-se de um texto elaborado a partir de uma
pesquisa que deu origem a uma dissertação de mestrado defendida em 2018, no
Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A metodologia da pesquisa se baseou na
abordagem qualitativa, na modalidade de estudo de caso, tendo como locus da
pesquisa o Colégio da Polícia Militar Alfredo Vianna, situado na cidade de
Juazeiro – Bahia. Os dados foram obtidos por meio de análise documental, em
consulta ao Regimento Escolar do Colégio da Polícia Militar da Bahia e ao
Manual do Aluno; por meio de observações sistemáticas e assistemáticas bem como
de entrevistas semiestruturadas com alunos do 3° ano do Ensino Médio, gestores
e professores. A análise dos dados e informações coletadas no campo da pesquisa
baseou-se nos princípios da análise de conteúdo, definida por Bardin (2011),
como organização, codificação, categorização e inferência. O corpus teórico que
serviu como base para as interpretações sobre o objeto de estudo se fundamenta
nos conceitos e teorias existentes sobre cultura escolar e cultura militar. Os
Colégios da Polícia Militar (CPM) apresentam uma proposta escolar com
características diferenciadas em metodologia, valores, finalidades, normas, organização
e funcionamento. Esse contexto distinto é fruto de normativas governamentais
(estaduais) que fixam um sistema de gestão compartilhada entre duas
secretarias, quais sejam, a Secretaria de Educação e a Secretaria de Segurança Pública,
especificamente a Polícia Militar (PM). Assim, por meio de Termos de Cooperação
Técnica, que regulamentam a gestão e funcionamento dos CPM, há o
compartilhamento das atividades pedagógicas, administrativas, financeiras e
patrimoniais entre as referidas secretarias. Essa parceria integra às
instituições não apenas o termo ‘militar’, mas também atividades, valores e
normas, um rol de elementos próprios de instituições militares e, inclusive,
Agentes Militares, que atuam profissionalmente tanto na docência quanto
administrativamente.
O Sistema de Colégios da Polícia Militar, que
compreende uma rede de escolas estruturadas e organizadas segundo normas
próprias e comuns, é pautado numa formação cívico-militar, destinada a filhos
de militares, servidores e civis, e tem chamado atenção por sua expansão nos
Estados brasileiros. Segundo levantamento realizado em 2015 pela Folha de S.
Paulo3 , 93 estabelecimentos de ensino funcionavam em 18 Estados brasileiros
baseados no modelo de gestão das Polícias Militares. Em 2017, esse número
saltou para 122 unidades instaladas, com destaque para os Estados de Goiás, com
36, Minas gerais, com 26, e Bahia, com 13 (SANTOS, 2018). A expansão desse
modelo escolar continua avançando, o que permite a interiorização dos CPM em
várias outras regiões, situação perceptível, ao se tomar, por exemplo, o Estado
de Goiás, que conta, em 2019, com 604 unidades instaladas e em funcionamento. O
ato governamental de cooperação técnica é uma peculiaridade dessas instituições,
que as diferenciam das demais escolas, civis, principalmente pela interrelação entre
dois campos distintos: o Educacional e o Militar. Por essa relação, esses
estabelecimentos incorporam agentes, símbolos, valores, e outros elementos da
Cultura Militar que afetam diretamente o funcionamento, a gestão, as relações sociais
e o cotidiano escolar, engendrando assim uma cultura singular e com características
próprias. É em razão desses aspectos, desse contexto multifacetado dos CPM, que
se faz pertinente discorrer sobre a Cultura Escolar-Militar.
CULTURA ESCOLAR E CULTURA MILITAR: RELACIONANDO OS
CONCEITOS
As instituições escolares têm ocupado o lugar de
“gestão e transmissão de saberes e símbolos” (FORQUIN, 1992, p.28), espaço de
educação formal, encarregado de levar às novas gerações os conhecimentos
construídos socialmente. Ao mesmo tempo, também são dotadas de um caráter
dinâmico, criativo e multifacetado que se apresenta nas práticas cotidianas, da
vida e do fazer escolar e deles resulta. Nesse sentido, os estudos sobre a
escola não podem excluir as características do seu funcionamento. Assim, para
captar as características que possibilitam compreender o funcionamento da
escola, é preciso então levar em consideração a práxis da escola, sua Cultura
Escolar, produto cultural da capacidade criativa da escola (CHERVEL, 1990), a
qual pode ser compreendida como resultado de todas as ações humanas no ambiente
escolar: toda prática escolar é cultura (BENITO, 2017; SILVA, 2009). A noção de
Cultura Escolar permite incluir não apenas as estruturas pesadas e reprodutivas
da escola, mas também seus sujeitos, os comportamentos, os conhecimentos, os
espaços, as relações conflituosas ou pacificas, as práticas e normas (JULIA,
2001; VIÑAO, 2006). Para Julia (2001, p.10), um dos primeiros autores a
discorrer sobre o conceito, Cultura Escolar se configura como “um conjunto de
normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto
de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos”. Em linhas semelhantes, Antonio Viñao (2006) considera
Cultura Escolar como o conjunto de teorias, ideias, princípios, normas
diretrizes, rituais, inércias, hábitos e práticas sedimentados ao longo do
tempo sob a forma de tradições e regras e compartilhado por seus atores no
interior das instituições de ensino. Assim posto, a Cultura Escolar permite
dirigir o olhar para o interior dos processos escolares, para o estudo das
questões escolares como as relações entre os diferentes atores, os ritos, os
procedimentos, tradições, costumes e as normas. A Cultura Escolar centra-se na
perspectiva do próprio ambiente escolar. Vinão (2006) também nos apresenta um
elemento pertinente ao introduzir a ideia de ‘culturas institucionais’ como
referência às culturas produzidas por outras instituições distintas, sejam de
caráter educacional (de níveis diferentes, pública ou privada), governamental,
político, religioso, etc., além também da cultura dos professores e da sala de
aula, dos alunos e das famílias ou pais, que se incorporam à Cultura Escolar
como produto dos tipos de alinhamento com a instituição de ensino. Assim,
embora cada estabelecimento educacional detenha sua própria Cultura Escolar,
esta carrega traços culturais que a caracteriza e distingue das demais (VIÑAO,
2006, p.80). Segundo Dussel (2014. p.261), “a cultura escolar abriu caminho
para a noção de culturas escolares plurais”. Essa acepção faz alusão às
culturas específicas de cada escola que, inclusive, conduzem Viñao a utilizar a
expressão Culturas Escolares, no plural, na qual cada escola é detentora de sua
própria cultura. De certo, as definições de cultura escolar referem-se
claramente a uma variedade de elementos culturais (ELÍAS, 2015, p. 290). Nessa
mesma linha, Escolano Benito (2000; 2017) advoga a existência e interação de
diversos tipos de culturas da escola e elenca ao menos três: a cultura
empírico-prática, construída pelos professores no exercício da sua profissão; a
cultura científica, constituída pelos especialistas e pelos conhecimentos
acadêmicos; a cultura política, de origem políticoinstitucional e engloba os
administradores e burocratas que regulam e gerenciam os sistemas e instituições
educacionais.
Escolano Benito (2000; 2017), ao argumentar sobre a
cultura política, concede bases para explorar as relações que se estabelecem
nos CPM (instituições criadas por meio normativo político-institucional) a
partir do alinhamento entre os campos educacional e militar, permitindo a
incorporação de traços da Cultura Militar à instituição escolar. Segundo Sousa
(2015, p.16), a Cultura Militar pode ser definida como “um conjunto de valores,
costumes, tradições e base conceptual que ao longo do tempo se tornaram o
caráter da profissão militar”. Trata-se de uma cultura que deriva de
determinadas características esperadas dos militares, como comportamento,
lealdade, honra, respeito, trabalho em equipe, dever altruísta, e dos valores
que suportam esses elementos, tais como a hierarquia e a disciplina. A Cultura
Militar não circunscreve apenas um aspecto cultural profissional; não apenas
define uma profissão, ela produz uma identidade militar, expressando, assim,
nos sujeitos um estilo de vida, um modo de ser diário e cotidiano (SILVA, 2012).
É uma cultura que padroniza, tornando homogêneo o comportamento, o pensar, as
práticas e os uniformes, sob a tutela de um mesmo regulamento. Por fim, a
Cultura Militar é fruto de uma tradição secular, construída, ensinada e transmitida
por diferentes instituições militares e permeada por teorias e tradições militares
bem como pelo aspecto político.
O CPM ALFREDO VIANNA: UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO
Na Bahia, a partir do Decreto n° 16.765, assinado
pelo governador Antônio Balbino e publicado no Diário Oficial do Estado em
09/04/1957, regulamentou-se a criação do primeiro Colégio da Polícia Militar da
Bahia – Unidade Dendezeiros, em Salvador. Na mesma data, o Boletim Geral5 da
Polícia Militar documentava a fundação de uma “instituição escolar secundária,
pública, gratuita, militarizada e destinada aos filhos (do sexo masculino) dos
policiais militares e de outros funcionários públicos” (JESUS, 2011, p.51).
Anos mais tarde, em 1998, é criado mais um colégio, o CPM, Unidade Lobato,
também em Salvador. Entre os anos de 2005 e 2007 novas unidades foram criadas,
alcançando o número de 13 instituições em funcionamento, garantindo a expansão
e interiorização dos COM em todo o Estado. É nesse cenário que, em 2006, é
criado o CPM Alfredo Vianna em Juazeiro-BA.
Segundo histórico disponível no sítio oficial da
Polícia Militar, antes da transformação em Colégio Militar, a instituição teve
suas atividades iniciadas em 1972, sob o nome de Centro Integrado Alfredo
Vianna, contemplando o ensino de 1° a 4° série. Em 1985, a partir da Portaria
n° 10080, o estabelecimento passou a se chamar Escola de 1° Grau Alfredo
Vianna, contemplando agora o ensino de 1° a 8° série. Somente em 2006, por meio
de Termo de Cooperação Técnica, firmado entre as Secretarias de Educação e
Segurança Pública (Polícia Militar) do Estado, a instituição foi transformada
em Colégio da Polícia Militar Alfredo Vianna (CPMAV), atendendo a alunos dos
Ensinos Fundamental e Médio. O sistema de gestão compartilhada entre as
secretarias, firmado pelo Termo de Cooperação Técnica, celebrado através do
Convênio n° 018/2015 e reafirmado pela Portaria Conjunta SEC/SSP/PM n° 01 de
17/03/2015, dá se através de um Colegiado Diretor (instância de deliberação
administrativa, financeira e pedagógica das unidades escolares) composto por um
Diretor designado por cada uma das secretarias. O funcionamento e todas as
atividades desenvolvidas no CPM se dá em consonância com a Diretriz Educacional
n° 001 de 2016, documento instituído pelo Instituto de Ensino e Pesquisa da
Polícia Militar (IEP), que define o Regimento Escolar dos Colégios da Polícia
Militar da Bahia. O regimento escolar, dividido em sete títulos e um anexo,
expressa as finalidades, valores e princípios, bem como a estrutura
organizacional e didática, a forma de ingresso, as normas de convivência,
disciplinares e de promoção. A forma de ingresso na instituição se dá por meio
de sorteio eletrônico, embora, em seu primeiro ano de funcionamento, as vagas tenham
sido definidas por meio de seleção. Obedece a um determinado percentual de
vagas por série, sendo 50% para filhos de militares, servidores civis e
professores e outros 50% para filhos de civis. Conforme o IEP, em 2017, a
quantidade de alunos matriculados somava 714, sendo 181 filhos de militares, 2
de servidores e 531 de civis. Percebe-se que, apesar do percentual reservado
para filhos de militares, a maioria das vagas era preenchida por civis. Seu
corpo docente era composto por 36 civis e 25 militares (Policiais Militares,
designados pelo Diretor PM, através do IEP e detentores de formação acadêmica
exigida para o exercício da docência, segundo Regimento Escolar, sendo o
cumprimento da função custeado pela Secretaria de Segurança Pública). O
exercício da docência para os militares habilitados contempla as funções de
Instrutor e Monitor, sendo este último Praça PM que auxilia ou substitui o
Instrutor. Já o quadro administrativo do CPMAV apresentava 16 civis e 34
militares (Policiais Militares).
O CPMAV, em 2018, teve seu local de funcionamento
alterado, passando a desenvolver suas atividades não mais na antiga instituição
que lhe conferiu o nome, operando então nas instalações do Colégio Polivalente
Américo Tanuri, que enterra seu patrimônio histórico-cultural-educacional de
décadas e cede lugar ao CPM que ainda carrega seu nome de origem e passa a
contar com uma estrutura maior e capaz a receber mais alunos.
AS CARACTERÍSTICAS DE UMA CULTURA ESCOLAR-MILITAR
A concretização do convênio que cria o CPMAV engendra
uma singularidade que diferencia essa instituição das demais escolas civis
públicas ou privadas. Trata-se do seu modelo de gestão partilhada, um caráter
sui generis, que normatiza a entrada da Cultura Militar na instituição e
confere uma inter-relação das esferas Escolar-Militar, permitindo a penetração
de uma gama de elementos militares na vida escolar, os quais são prescritos por
um conjunto de normas e regulamentos. Dentre essas normas, o Regimento Escolar
dos Colégios da Polícia Militar da Bahia constitui um interessante documento de
análise e explicita seu caráter militar, inclusive ao confirmar sua
singularidade pelas características de proposta pedagógica específica voltada
para, além das suas atribuições legais e regularmente definidas, a formação
cívico-militar própria da PM da Bahia. O referido documento, para além da
definição da estrutura e funcionamento dos CPM, expressa também sua identidade
militar, principalmente pela presença e quantidade de expressões de
características militares: a palavra “Militar” (e suas variações) é mencionada
168 vezes; os termos “Normas” e “Comportamento” aparecem 54 e 50 vezes,
respectivamente; a expressão “Disciplina” (e suas variações) é explicitada 117
vezes, dentre as quais 29 fazem referência à matéria (conteúdo de ensino ou
área do conhecimento) e na Seção III, Das Normas Disciplinares (onde estão
prescritas as transgressões, as punições e penalidades), se repetem 38 vezes. Pela
força das normas, a Cultura Militar penetra a escola, integrando se e deixando
sua marca na gestão escolar, na construção do currículo, nas práticas docentes,
na sala de aula, na divisão dos espaços e do tempo, nas relações interpessoais
e nas atividades dentro e fora da escola, inclusive com a inserção de órgãos da
Polícia Militar, bem como de um corpo específico de profissionais (policiais)
incumbidos da garantia e efetividade do que está regulamentado. Nessas
instituições, desenvolve-se uma educação profundamente regulamentada, que
normatiza práticas, comportamentos e saberes, fazendo-os singulares pelo estabelecimento
de uma “hierarquia” de valores militares sobre os civis.
Ao destacar a presença de elementos militares nos
documentos estudados, não podemos perder de vista que “os textos normativos
devem sempre nos reenviar às práticas” (JULIA, 2001, p.19) e como normas e
práticas são coordenadas em relação a determinadas finalidades. A Cultura
Escolar não se refere somente a normas, mas também a práticas que induzem
comportamentos e produzem configurações múltiplas e variadas no espaço escolar
(DUSSEL, 2014; MUNAKATA, 2016). Nesse sentido, estudar normas juntamente com as
práticas nos permite compreender os processos educacionais que se estabelecem na
instituição. Assim, partindo do estudo de normas e práticas, com base nos dados
coletados, duas características de escolarização ficaram evidentes: uma que atua
sobre o corpo e outra sobre o comportamento dos indivíduos.
CONTROLE SOBRE A LINGUAGEM E A ESTÉTICA CORPORAL
Considerando que o corpo se expressa nas interações
humanas, enquanto linguagem utilizada nos processos comunicacionais (WEIL;
TOMPAKOW, 2015), nesta seção buscou-se descrever e analisar os dispositivos
característicos da Cultura Escolar do CPMAV utilizados para moldar e
uniformizar os comportamentos a partir do controle sobre as expressões do
corpo. Durante as visitas de observação, previstas na metodologia da pesquisa, buscou-se
conhecer a rotina escolar da instituição. Numa delas, logo pela manhã, por
voltas das 06h15min., os alunos, que começavam a chegar – uns de carro, outros
de bicicleta ou a pé – aglomeram-se em frente ao colégio, na calçada ou encostados
em árvores. Às 06h20min a entrada foi liberada, sendo o ingresso à instituição
condicionado à apresentação da carteira estudantil. No portão, um Policial
Militar, devidamente fardado, fiscaliza e controla o fluxo dos alunos, deixando
à parte àqueles com pendências no fardamento e que não apresentaram a carteira
estudantil. Nas dependências do colégio, as salas de aula, laboratórios e salas
administrativas formam um quadrado, sendo seu interior o pátio e, no centro deste
a cantina. Os estudantes deixavam seus materiais nas salas de aula e voltavam ao
pátio para as atividades do dia. Uma sirene soou às 06h45min; era o aviso que sinalizava
para os alunos entrarem ‘em forma’ e iniciar a parada matinal. A parada matinal
diz respeito às revistas ao corpo discente e compreende, além das atividades
militares, a verificação do uniforme, da apresentação pessoal, do cabelo e
acessórios, dentre outros elencados no Regimento Escolar e no Manual do Aluno.
Os alunos iam tomando posição, agrupando-se por série, em pé e enfileirados,
organizando-se inclusive pela distância entre os corpos. Via ali, na prática,
uma “parada militar”, características da Cultura Militar, elementos próprios de
instituições militares, uma organização dos espaços, uma disciplina dos
movimentos, uma padronização dos uniformes, um respeito a símbolos da pátria e
da corporação militar. Uma aparelhagem de sonorização estava montada, e a Aluna
do Dia 6, aparentemente nervosa, toma posse de um microfone e comanda as ações:
“Atenção! Silêncio! Sentido!”. A ordem é entendida e imediatamente os movimentos
se igualam, os corpos postam-se eretos, as pernas fechadas, os braços alongados
para o chão e as mãos (espalmadas) vão sobre as coxas. A aluna dirige-se ao
Coordenador do Corpo de Alunos7 , presta continência, identifica-se pelo nome e
número de matrícula e solicita autorização para iniciar as atividades. Após
permissão concedida pelo coordenador, e sob o comando da Aluna do Dia, os
demais alunos, enfileirados e em posição de sentido, passam a entoar o Hino da
Independência da Bahia. Nesse momento, inspetores PM circulam entre as turmas
verificando se todos entoam o hino, conferem o alinhamento e a postura. Ao
finalizar o canto, a Aluna do Dia dá a ordem: “Descansar!”. A postura dos
alunos muda, as pernas abrem ao nível dos ombros, enquanto os braços voltam-se
para trás. O Coordenador toma a palavra e discursa sobre a disciplina e os
valores do CPMAV, enfatizando que o desrespeito às normas não é tolerável e
finaliza: “aqui não é a casa da Tia Sassá!”. Em seguida passa a palavra para a
Aluna do Dia que brada: “sentido; descanso; sentido; descanso!”. Os estudantes
obedecem às ordens de comando com seus corpos treinados, alternando movimentos
e
posturas. Finalizando, as turmas são informadas que o deslocamento às salas dar se-ia do ano inferior ao mais alto (9° ano do Ensino Fundamental, 1°, 2° e 3° ano do Ensino Médio) e seguem as últimas ordens: “direita; volver; volver; esquerda, volver”. A obediência a esses comandos se constitui uma técnica corporal específica, tradicional e eficaz: são “Técnicas do Corpo” (MAUSS, 2003). Para o autor, a expressão reflete as maneiras como os homens sabem servir-se, de forma tradicional, do seu corpo. Portanto, há uma técnica do corpo, um ato de ordem mecânica, física ou físico-química que é efetuado com esse objetivo (MAUSS, 2003, p.407), mas vejam, há também uma “educação do corpo”, ensino de técnicas do corpo que possibilitam certas aprendizagens.
posturas. Finalizando, as turmas são informadas que o deslocamento às salas dar se-ia do ano inferior ao mais alto (9° ano do Ensino Fundamental, 1°, 2° e 3° ano do Ensino Médio) e seguem as últimas ordens: “direita; volver; volver; esquerda, volver”. A obediência a esses comandos se constitui uma técnica corporal específica, tradicional e eficaz: são “Técnicas do Corpo” (MAUSS, 2003). Para o autor, a expressão reflete as maneiras como os homens sabem servir-se, de forma tradicional, do seu corpo. Portanto, há uma técnica do corpo, um ato de ordem mecânica, física ou físico-química que é efetuado com esse objetivo (MAUSS, 2003, p.407), mas vejam, há também uma “educação do corpo”, ensino de técnicas do corpo que possibilitam certas aprendizagens.
Uma análise dos documentos evidenciou que a
educação do corpo compete à disciplina de Instrução Militar, componente da
matriz curricular do CPMAV, a qual, objetiva promover a assimilação da Cultura
Militar e da cultura policial militar por parte dos alunos, bem como despertar
o gosto e a vocação pela carreira militar, sendo seu exercício de
responsabilidade de Inspetores e Monitores PM. Nessa disciplina, os alunos
aprendem sobre os movimentos corporais de modo a reconhecerem e obedecerem
uniformemente os comandos de uma tradição militar incorporada pela escola.
Assim, o ensino-aprendizagem de um conjunto de práticas corporais vivenciadas
na escola visa a adaptar o corpo às expectativas individuais e institucionais
por meio do movimento ordenado dos corpos que se submetem ao controle
determinado pela ação pedagógica. Enquanto disciplina do currículo da escola, a
Instrução Militar prescreve e define o que se quer desses corpos e como se
quer. Por outro lado, enquanto prática, ela materializa e permite a transmissão
e incorporação dos conhecimentos e práticas corporais desejadas, utilizando-se
de técnicas operacionais para ‘adestrar’, moldar, governar e produzir corpos
homogêneos. Um elemento específico da Cultura Militar que permite a eficácia da
institucionalização e incorporação desses mecanismos normativos e práticos é a
disciplina. A disciplina constitui um gerenciamento e controle sobre os corpos,
incidindo sobre seu funcionamento, bem como no tempo e espaço, individualizando-os,
e, por sua vez, ela “fabrica indivíduos” (FOUCAULT, 1987). Ela é dotada de um
poder de controle que opera sobre o corpo, impondo uma obediência, uma relação
de docilidade útil e em conformidade com um ‘regime de legalidade’. No CPMAV, o
regime de legalidade é representado pelas normas disciplinares, especificadas
no Regimento Escolar e no Manual do Aluno, que se utiliza de elementos
coercitivos da punição e penalização como dispositivos de segurança contra
transgressão e desvio do modelo prévio, determinado e padrão. O dispositivo da
punição é um agente inibidor que atua para impedir o erro disciplinar e manter
a obediência pelo medo. Assim, estabelece-se uma noção de infra-penalidade,
como coloca Foucault (1987, p.149): Na essência de todos os sistemas
disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma
espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos
especificados, suas formas particulares de sanção, suas instâncias de
julgamento. As disciplinas estabelecem uma ‘infra-penalidade’; quadriculam um
espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de
comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua
indiferença.
As técnicas de sujeição do corpo, habituais na
Cultura Militar, são incorporadas à dinâmica pedagógica da escola, tornando-se
um caráter habitual pela repetição e reprodução diária das suas práticas. A
rotina, o hábito, institucionaliza as práticas, cristalizando-as e
corporificando-as na vida escolar, ao tempo que se instituem como certos, normais
e naturais. Assim, quanto mais tempo os alunos convivem com esses mecanismos,
mais eficaz é a assimilação e inculcação dos valores e normas oriundas do meio
militar, imprimindo fortes marcas na cultura escolar. O controle da linguagem
corporal não abarca apenas a postura, os movimentos, os gestos e ações do
corpo; ela inclui também um aspecto visual, da aparência, que nos permite falar
de uma ‘estética corporal’. As definições normativas instituem as vestimentas,
os calçados, os acessórios, o corte de cabelo e penteado, a maquiagem, cor e
tamanho da unha; por meio de permissões e proibições, fixam uma padronização,
uma uniformização dos corpos. Por outro lado, na prática, representa uma
estética da aparência, cujo objetivo é comunicar e identificar os corpos,
formatar e criar iguais, apagar, assim, as diferenças. O Regulamento de
Uniformes, prescrito no Manual do Aluno, reforça essa estética corporal ao
definir o ‘código de vestuário’ da instituição que, diferente das escolas
civis, não permite variantes além do previsto como calçados, calças e camisas
de outros tipos, cores e modelos. Há diferentes uniformes e cada um está
relacionado a um evento ou atividade específica, mas, para além de uma vestimenta,
eles carregam uma identidade militar, pois transmitem os elementos e
significados próprios de instituições militares. O fardamento identifica o
aluno, sua patente, tipo sanguíneo, seriação, a instituição e seu Estado de
origem, características que o definem como elemento material e cultural do
CPAMV, um artefato de comunicação, como advogam Ribeiro e Silva (2012). Enquanto
artifício de comunicação, o uniforme também conforma uma ideia de igualdade.
Segundo a Coordenadora, “o fardamento padrão exclui a concepção de diferença de
classes, pois todos possuem a mesma vestimenta, desde o tipo de tênis até as
demais roupas” (Relato de entrevista). Porém, o que se observou foi um “sistema
de igualdade formal” (FOUCAULT, 1987), uma igualdade estética que difere do
real, principalmente pela dificuldade de alguns alunos em adquirir o fardamento
por falta de condições financeiras, o que leva a escola a realizar campanhas
para doação de uniformes por parte daqueles estudantes que têm uma melhor
situação econômica.
A estética corporal é esse culto à apresentação
pessoal. Ela faz invisíveis as diferenças, diminui a visibilidade do
heterogêneo e atinge as individualidades, padronizando o feminino e o
masculino. Pela estética, o uniforme é inviolável, deve estar limpo e passado,
com fivela no cinto, sapatos e coturnos polidos, sendo proibido aos alunos
fixar ou pendurar óculos, broche ou distintivo. Sobre o corpo a estética define
distinções, segmentando o masculino e o feminino. Ao primeiro fica proibido
raspar a cabeça ou tingir o cabelo, bem como o uso de topete, costeleta e bigode.
Ao feminino é vedado o uso: de esmaltes em cores fortes (preto, vermelho,
violeta, etc.); de brincos em apenas uma orelha ou mais de um em cada orelha,
bem como argolas e pingentes; de anéis com pedras de cor e não podendo ser
colocado no polegar; de presilhas coloridas; de maquiagem em excesso ou em
cores chamativas. Outras proibições são dirigidas a todos, como a proibição de
lentes de contato diferentes da sua cútis, óculos de sol, pulseiras, fitas,
tornozeleiras, piercing e argolas, aparelho celular, dentre outros. Constatou-se
até aqui que o controle sobre a linguagem e a estética do corpo permite a
incorporação individual de elementos da Cultura Militar e, coletivamente,
faz-se homogênea. Assim, há um controle absoluto do corpo que invisibiliza as
diferenças, formatando, uniformizando e padronizando os indivíduos, resultando
na formação de Alunos PM’s. Eis o que se apresenta: uma instituição que, para
além do ensino formal, desenvolve um ensino da Cultura Militar, uma formação
militar. Tem-se, pois, uma escolarização que, pelo imperativo da disciplina,
forma indivíduos obedientes. Mas, a eficácia da cultura militar não está apenas
na educação do corpo, ele perpassa também uma modelagem do comportamento.
MODELAGEM DO COMPORTAMENTO
A militarização de escolas representa a
inter-relação entre a escola e culturas exteriores a ela (BENITO, 2017),
destacando-se aqui a cultura militar. Na prática, essa interatividade das
culturas escolar e militar proporcionou uma metamorfose na realidade e no
cotidiano da instituição pesquisada, a partir da incorporação de normas e
práticas militares ao ambiente de educação escolar, representando um processo
de “hibridação cultural” (VIDAL, 2006, p.159). Nessa relação cultural
escolar/militar, desenvolve-se um ensino cívico-militar, no qual se observa um
controle sobre a linguagem do corpo, como já destacado, mas também, uma
modelagem do comportamento. A modelagem do comportamento compreende uma
educação específica, que se desenvolve por meio de métodos, técnicas, critérios,
estratégias e instrumentos, os quais permitem o ensino e transmissão de
conhecimentos direcionados à formação de determinado padrão de comportamento.
Trata-se de uma educação cujo imperativo é formar pessoas cujo comportamento, a
conduta, o caráter, a moral e os hábitos dos indivíduos se pautem pela
obediência aos padrões normativos instituídos. O desenvolvimento dessa educação
no CPMAV se institui com normas e práticas formativas próprias da cultura
militar, com destaque para o controle sobre a linguagem corporal e padronização
do comportamento dos discentes. Assim, o conjunto de normas e práticas
objetivam o ensino, a transmissão e a incorporação de condutas e comportamentos
específicos (JULIA, 2001), princípios doutrinários da formação militar. A efetivação
do modelo de comportamento padrão se dá pela repetição de rituais cotidianos,
que visam a formar o sujeito dócil e convencido da sua necessidade de adaptação
às intempéries naturais e sociais e, ao mesmo tempo, habituados a desafiar seus
limites físicos e intelectuais em busca da superação. Essa intencionalidade do
ato educativo desenvolvido na instituição pesquisada é demonstrada no Regimento
Escolar, o qual prescreve uma deontologia estudantil, que faz referência ao
conjunto de deveres estabelecidos em código específico aos quais os alunos
estão submetidos e impõe a cada integrante do CPMAV uma conduta moral,
irrepreensível e adequada a qualquer espaço social, permitindo que os
indivíduos levem para a vida os valores apreendidos, o respeito às leis, às normas
e aos regulamentos. A análise do regimento mostra uma educação do comportamento
e um controle deste, por meio da quantificação, mensuração e classificação, ao
estabelecer graus de conduta que variam de 0 a 10, divididos em seis níveis:
excepcional (10); ótimo (9 a 9,99); bom (7 a 8,99); regular (5 a 6,99);
insuficiente (2 a 4,99); e incompatível (abaixo de 2). Na prática, o valor
atribuído ao comportamento do estudante é que define sua permanência ou não no
CPMAV. Outro documento analisado, o Manual do Aluno do CPMAV, explicita pormenorizadamente
os elementos à formação da conduta militar. Ele prescreve e regula a conduta
diária dos alunos, dentro e fora da instituição, discorrendo sobre o permitido
e o proibido. Praticar o proibido, o não permitido ou vedado, é ingressar no
comportamento incompatível, na prática de indisciplina, numa “irreverência que
desacata as normas estabelecidas” (HECKERT; ROCHA, 2012, p.88). Não é por acaso
que os referidos termos perpassam os 76 artigos do documento, sendo que
“proibido (a)” aparece 17 vezes; “não é permitido”, seis vezes; e “vedado” é
descrito 14 vezes, sendo nove apenas no segmento feminino. Assim, toda conduta
contrária ao modelo instituído é ‘anormal’, à medida que todo aluno CPM carrega
a personificação militar e deve zelar pelo nome da instituição e da Polícia
Militar, de tal forma que seu comportamento deverá ser exemplar e modelo para
os demais. Não se trata apenas de cumprir a norma; há de ser exemplo, como
expressa o slogan do CPMAV: ‘A palavra convence, o exemplo arrasta’. Ser
exemplo é resultado da educação do comportamento e representa a obediência às
regras que definem o modelo prévio de conduta. A garantia dessa obediência está
atrelada, em grande parte, ao instrumento militar da disciplina que, assim como
na educação do corpo, exerce o controle sobre a conduta dos indivíduos. A
disciplina age regulamentando tudo acerca da instituição e, enquanto elemento
da Cultura, opera sobre a realidade escolar impedindo a prática do ‘anormal’ e
o comportamento indisciplinado, exercendo seu controle por meio de um regime de
legalidade – Normas Disciplinares do CPMAV – que penaliza o infrator e
coercitivamente, pelo medo, inibe a prática da transgressão disciplinar. Acerca
da prática da penalização, o Professor “E” se expressa da seguinte forma: “o
aluno sabe quando ele está infringindo o regimento. Ele tem consciência quando
tá infringindo uma regra, e o professor ele tem a quem se reportar pra que
aquele aluno seja penalizado quando ele tá atrapalhando a aula, quando ele comete
algum erro de ordem disciplinar” (Relato de entrevista). Segundo o Regimento
Escolar, transgressão disciplinar é qualquer violação à ética, aos deveres e
obrigações escolares, às regras de convivência social e aos padrões de
comportamento impostos aos alunos e são classificadas em quatro naturezas:
leve, média, grave e eliminatória. Contudo, nem todas as transgressões implicam
a perda de pontos de comportamento, algumas são convertidas em punição
alternativa ou castigos. O primeiro contato com a prática de punição ocorreu
quando me retirava da sala de direção, após entrevista com o Diretor Sec. Já no
pátio, observava vários alunos em forma, organizados em fila, sob o sol das
10:00 h e uma temperatura próxima aos 35 graus. Pelas indicações no uniforme,
percebi que todos eram alunos do 2° ano. O comandante do Corpo de Alunos
discursava, repreendendo os pela prática de comportamento incompatível.
Aproximou-se de mim o Chefe de Setor. Explicava que a turma estava cumprindo
punição de dez minutos por indisciplina em sala de aula que impossibilitou o
desenvolvimento das atividades docentes. Denunciados pelo professor, todos
foram punidos, porque cada um é responsável pela ordem em sala de aula, de modo
que quem comete conduta irregular seja repreendido tanto pelo Xerife, quanto
pelos demais alunos. Para o Chefe de Setor, esse tipo de penalização constitui
punição alternativa, um “castigo” que não incide em perda de pontos por
comportamento incompatível.
Nessas passagens, puderam-se destacar características
da educação do comportamento, desde o aspecto da fiscalização, que impõe a
todos uma estrutura de vigilância, um sistema de câmeras oculares organizado
com a finalidade de vigiar e controlar as condutas. Todas essas características
explicitadas atuam coercitivamente sobre a conduta dos discentes e,
principalmente, pelo medo da punição, concebem condições de governabilidade à
instituição, assegurando o bom funcionamento do estabelecimento e a aparência
de bem-estar dos indivíduos. Os efeitos da disciplina e controle sobre a
conduta destacam-se também em sala de aula. Nas cadeiras organizadas em filas,
os alunos devem estar sentados e manter a limpeza da mesma. O silêncio é
obrigatório e as conversas paralelas são proibidas. Os discentes devem manter total
atenção à aula, permitindo que o ensino flua sem interrupções. Quaisquer
desvios de comportamento são denunciados tanto pelo Xerife, quanto pelo
professor. Os docentes recebem o status de oficial, um tipo de personificação
militar, um estatuto simbólico que confere uma relação diferenciada com seus
alunos. Todos devem respeito ao professor, prestando-lhe continência e
respondendo-o por Senhor. “Boa tarde, Senhor!”; bradavam os alunos ao receber o
docente em sala, que os respondia com um “descansar!”. Essa personificação
militar também está expressa na fala do Diretor PM: “o aluno ao entrar na sala
de aula ele lá também é olhado pelo professor, mesmo o professor civil – dentro
de colégio militar ele tem prerrogativa de oficial. Lá dentro é idêntico a um policial
militar que estivesse ali ministrando aquela aula” (Relato de entrevista). Os
relatos explicitados foram úteis para demonstrar como a educação do
comportamento, a partir da Cultura Militar, é responsável pela conduta dos indivíduos,
utilizando-se de atividades e conteúdos que passaram a representar um campo
fértil e útil ao ambiente escolar. Destaca-se também a presença de instrumentos
coercitivos como um conjunto de normas disciplinares que, pelo medo, impõe um
controle sobre a conduta, a qual é reafirmada por uma disciplina militar que
fundamenta a obediência ao regulamentado e responde pelas diversas faces e
características da Cultura Militar. Além disso, ainda expressa o papel do corpo
militar como legitimador da cultura, dos valores, dos conhecimentos, das
práticas, da identidade e conduta militar. Os Policiais são os guardiões da ordem
institucionalizada e assumem o papel de fiscalizadores do comportamento padrão,
atuando para que os indivíduos incorporem as normas, sendo obedientes e
tornando possíveis as práticas. Além dos aspectos apresentados, a educação da
conduta ultrapassa os muros do CPM e deixa suas marcas também na instituição
família; isso porque os pais, ao matricularem seus filhos, assumem o
compromisso de auxiliar no cumprimento dos regulamentos necessários à
permanência no colégio. Esse contexto ficou claro ao se observar a presença
constante dos pais na escola que, na maioria das vezes, estava associada ao
comportamento incompatível, à indisciplina e à conduta anormal dos alunos, como
também pela ausência escolar não comunicada. Por esses fatores, o Corpo de
Alunos convoca a presença dos responsáveis para comunicação das faltas
cometidas e recebimento de justificativas. Todo o aparelho militar é posto e
desenvolvido como artefato de formação à conduta militar, mas não circunscreve
apenas a educação do corpo e do comportamento; ele explicita, como observado
nos documentos institucionais, o pensamento militar, um aparato de componentes
necessários à admiração pela carreira militar e inculca nos indivíduos o
sentimento de respeito e admiração pelas instituições militares, seus valores e
cultura, despertando-lhes a vocação para a profissão Policial Militar.
Familiarizados e adaptados à rotina militar, a partir da educação do
comportamento, como do corpo, os alunos passam a almejar a profissão militar. Pelo
exposto, podemos afirmar que a Cultura Escolar do CPMAV, com a incorporação da
Cultura Militar, opera na conformação de uma conduta padrão e de uma moral a
qual ela mesma ajudou a criar, moldando e normalizando o indivíduo em
comportamento e caráter através de normas e práticas, inculcandolhes “valores e
virtudes morais, normas de civilidade, o amor ao trabalho, o respeito pelos
superiores, o apreço pela pontualidade, pela ordem e pelo asseio” (BARBOSA,
2011, p.7).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No estudo, constatou-se a inter-relação entre os
campos Educacional e Militar resultante do caráter político-normativo da
cooperação técnica que institui os CPM. Por essa dualidade, evidenciou-se a
existência de um hibridismo cultural que representa a interação entre
diferentes culturas no âmbito escolar, dentre estas a Cultura Militar,
característica da cultura política, de origem políticoinstitucional.
A partir dessa interação, há uma
institucionalização da Cultura Militar na realidade da instituição. Primeiro,
pela incorporação de um corpo de Agentes Militares e uma seara de elementos do
campo militar, tais quais valores, símbolos, vestimentas, normas, práticas e
conhecimentos. Segundo, pela pedagogização e transmissão dessa cultura que, por
meio de instrumentos e métodos distintos, permite o ensino de comportamento e
conduta específica, apreendida e inculcada pelos indivíduos. O resultado desse
rol de elementos militares, desse aparato militar na vida escolar é uma
educação específica que atua na promoção dos aspectos militares, objetivando a
transmissão e ensino da Cultura Militar. Identificou-se então, alicerçado nos
dados, uma educação do corpo e do comportamento que detém um controle sobre a
linguagem e estética corporal, bem como uma modelagem do comportamento, cuja
finalidade é padronizar e homogeneizar os corpos e condutas dos indivíduos. Essa
educação permite a formação de indivíduos conforme padrão desejado e utiliza de
uma disciplina militar e um regime de legalidade pautado em normas de
comportamento e conduta que prescreve castigos e punições pelo seu
descumprimento. Atrelado a isso, há o acompanhamento fiscalizador dos profissionais
militares que, em conjunto com os demais instrumentos de controle, permite a
eficácia na transmissão da Cultura Militar. Assim, padronizam-se os indivíduos,
apagando as diferenças e fabricando alunos obedientes e também aptos à carreira
militar. O estudo permitiu concluir que a Cultura Militar está diariamente no fazer
escolar, nas atividades diárias, nos corpos e comportamentos, nas práticas e
normas, inserida e preservada na estrutura de funcionamento do CPM. Assim, pela
incorporação e apropriação de uma seara de características militares, define-se
a “genética cultural” da instituição, engendrando seu próprio patrimônio
cultural e estabelecendo uma Cultura Escolar-Militar.
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AMILTON GONÇALVES DOS SANTOS é Mestre em Educação,
Cultura e Territórios Semiáridos (2018) e Graduado em Pedagogia (2009) pela Universidade
do Estado da Bahia (UNEB) – DCH III. Especialista em Docência do Ensino
Superior (2013) pela Universidade Cândido Mendes. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas
em História da Educação e Pedagogia da Pesquisa – GEPHEPP e do Grupo de
Pesquisa em Educação, Desenvolvimento e Profissionalização do Educador – UNEB.
Atualmente é Servidor Efetivo da Universidade Federal do Vale do São Francisco
– UNIVASF.
E-mail: amilton.santos@univasf.edu.br
JOSENILTON NUNES VIEIRA é Doutor em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2009), Mestre em Educação pela
Universidade Federal da Bahia (2002) e Graduado em Pedagogia pela Universidade
do Estado da Bahia (1993). Atualmente é Professor Adjunto na Universidade do
Estado da Bahia no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em
Educação, Cultura e Territórios Semiáridos. É também Professor Titular da
Autarquia Educacional do Vale do São Francisco / Faculdade de Ciências
Aplicadas e Sociais de Petrolina – AEVASF/FACAPE e Professor Colaborador no
Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Formação de Professores e
Práticas Interdisciplinares – PPGFPPI.
E-mail: vieirajn47@gmail.com.
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