Sociedade Ativismo
Como o Brasil lida com os direitos humanos?
Percepção de que tais direitos protegem bandidos
começou a ganhar força após fim da ditadura.
Fernando Frazão/Agência Brasil
Protesto contra a violência no Rio: dezenas de
ativistas dos direitos humanos foram assassinados no Brasil em 2017.
Adotada após a Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU é
considerada um marco legal na institucionalização desses direitos. Idealizado
por representantes das esferas cultural e jurídica, o documento, que completa
70 anos em 2018, tem encontrado forte resistência e gerado debates acalorados
no Brasil nos últimos anos.
Segundo uma pesquisa do Instituto Ipsos, realizada
no começo de abril de 2018, 66% dos brasileiros acreditam que os direitos humanos protegem mais os bandidos do que
as vítimas. Na região Norte, por exemplo, essa percepção
alcança 79%.
"Existe uma narrativa construída para
distorcer os direitos humanos", ressalta Flavia Piovesan, integrante da
Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA) e ex-secretária nacional dos Direitos Humanos.
"Sou professora de Direito Constitucional, e
minhas aulas sempre começam falando desse preconceito e de como podemos
corrigi-lo. É fundamental dizer que direitos humanos são para todos, que dizem
respeito a uma vida digna", analisa Piovesan, que também é docente na
PUC-SP.
Universal para quem?
Segundo o levantamento do Ipsos, 54% dos
brasileiros concordam com a frase "os direitos humanos não defendem
pessoas como eu". Para Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia
Internacional no Brasil, o falho acesso aos direitos humanos gera uma distorção
em seu conceito básico de universalização.
"Esses direitos ainda não são uma concretude
na vida de cada pessoa, e o Brasil não os realiza como deve. Numa sociedade
desigual, onde direitos de todos não são alcançados por todos, quem alcança é
um privilegiado. É uma população branca, urbana, que está em grande parte no
Sudeste do país", analisa.
Para Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights
Watch no Brasil, a desinformação em relação ao tema gera conclusões falsas.
"Essa falta de compreensão, associada a recentes ataques por parte de
líderes autoritários ou grupos que clamam defender a 'maioria', tende a
alimentar a noção equivocada de que os defensores de direitos humanos defendem
apenas 'minorias' – ou ainda, aqui no Brasil, 'bandidos' – e que, portanto,
atuariam do lado destes contra a polícia, por exemplo", diz.
Canineu destaca que defender direitos humanos
significa defender o respeito a valores básicos inerentes a todo ser humano,
centrados na dignidade, que possibilitem a construção de uma sociedade justa e
democrática.
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"Mas significa também denunciar o Estado
quando este excede o seu poder e se torna ele o violador dos direitos
fundamentais do cidadão, como o direito à vida, à integridade física, a um
processo justo e célere, à proteção contra a tortura e a violência, entre
outros", aponta.
Para Canineu, ainda há grandes desafios para que esses
direitos sejam integralmente implementados e garantidos na prática. "Isso
é visto, por exemplo, na segurança pública, em que se verificam altos índices
de violência policial, execuções extrajudiciais, encarceramento em massa,
presídios superlotados, enquanto tem sido difícil aprimorar investimentos em
políticas de segurança efetivas para a população", aponta.
Entre janeiro e setembro do ano passado, 62 ativistas dos direitos humanos foram
assassinados no Brasil, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
em relatório divulgado pela Anistia Internacional.
Direitos humanos e ideologia
A associação entre direitos humanos e impunidade
não é uma novidade no Brasil. Segundo Piovesan, a percepção de que esses
direitos protegem criminosos surgiu com o fim da ditadura militar, em 1985.
"É a partir do fim do regime militar que se
intensifica o processo de deslegitimação de quem defende a bandeira dos
direitos humanos", aponta. Um sintoma que pode explicar essa análise, diz
ela, está no fato de que o apoio a esses direitos é menor na faixa etária a
partir de 66 anos (48%).
Ao analisar o cenário brasileiro, Piovesan salienta
que os direitos humanos foram integrados à agenda do Estado apenas após a
redemocratização, mas os avanços dos últimos 30 anos são perceptíveis.
"O Brasil percorreu quase 500 anos da sua
história sem punir o racismo como crime. Isso veio em 1988, e a lei foi adotada
em 1989. O país ficou quase cinco séculos sem punir tortura. É com uma lei de
1997 que passou a fazê-lo, cumprindo a Constituição", completa.
Recentemente, ganhou força o debate de se os
direitos humanos se tornaram uma pauta da esquerda. Segundo Canineu, embora em
muitos lugares do mundo, e não só no Brasil, a pauta dos direitos humanos seja
comumente ligada a grupos alinhados à esquerda, "os direitos humanos
representam valores que se sobrepõem à polarização partidário-ideológica".
"Se posicionar contra violações de direitos
humanos não é nem deveria ser assumir uma posição de esquerda ou de direita,
senão a certeza de que certas práticas são moralmente inaceitáveis", diz.
Eleições podem ser decisivas
O pleito presidencial deste ano pode definir como o
Brasil vai diminuir ou aumentar suas ações com o objetivo de universalizar os
direitos humanos, dependendo do candidato eleito.
"Você tem um candidato como [Jair] Bolsonaro, que traz uma ideologia
carregada de racismo, homofobia, sexismo, e que está com os seus 18% [de
intenções de voto]. Isso preocupa", considera Piovesan.
Sem nomear candidatos, Canineu afirma que a Human
Rights Watch também vê com preocupação o processo eleitoral deste ano.
"Estamos conscientes do ambiente político frágil e da ameaça de
fortalecimento de narrativas que defendem a restrição de direitos supostamente
em favor de uma dita 'maioria'", afirma.
"Há uma necessidade urgente de fazer com que o
tema seja debatido a fundo e com que seja reforçado o compromisso do Estado
brasileiro com os direitos humanos", ressalta.
Werneck acredita que os direitos humanos estão
sendo contemplados nas candidaturas atuais. "Grupos estão abordando o
direito à vida segura, livre de violência. Todo mundo está no debate com as
suas visões, nós só precisamos saber entender. A sociedade está demandando e
há, de certa maneira, uma resposta, inclusive dos partidos", diz.
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